Teoria, método e experiências Freireanas - GADOTTI, M.

Autor: Moacir Gadotti
url: http://www.paulofreire.org/frontera_p.htm
acessado em: 03/10/2003

As teorias de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das ciências, para além da América Latina. Ao mesmo tempo em que as suas reflexões foram aprofundando o tema que ele perseguiu por toda a vida – a educação como prática da liberdade – suas abordagens transbordaram-se para outros campos do conhecimento, criando raízes nos mais variados solos – desde os mocambos do Recife às comunidades burakunins do Japão - fortalecendo teorias e práticas educacionais, bem como auxiliando reflexões não só de educadores, mas também de médicos, terapeutas, cientistas sociais, filósofos, antropólogos e outros profissionais. Seu pensamento é considerado um modelo de transdisciplinaridade.

Não podemos ver a Freire apenas como um educador de adultos ou como um acadêmico, ou reduzir sua obra a uma técnica ou metodologia. Ela deve ser lida dentro do contexto da "natureza profundamente radical de sua teoria e prática anti-colonial e de seu discurso post-colonial", como no diz Henry Giroux (in Peter Maclaren and Peter Leonard, organizadores, Paulo Freire: a Critical Encounter, Routledge, 1993, p. 177). Isso nos vai mostrar que Freire assumiu o risco de cruzar fronteiras para poder ler melhor o mundo e facilitar novas posições sem sacrificar seus compromissos e princípios.

As barreiras e fronteiras estão sempre à nossa volta. Os intelectuais e educadores que ocupam fronteiras muito estreitas não percebem que elas também tem a capacidade de aprisioná-los. Nesse sentido, é preciso relevar a importância da obra de Paulo Freire em termos mais globais. Seria ingênuo considerar a sua pedagogia como uma pedagogia só aplicável no chamado "Terceiro Mundo".

As primeiras experiências de Paulo Freire, com a educação de adultos, datam da década de 50, no nordeste brasileiro, aplicando o método que leva o seu nome, passando pelo Chile na década de 60 e auxiliando a reconstrução post-colonial de novos sistemas educacionais em diversos países da África, na década de 70. Voltando ao Brasil, depois de 16 anos de exílio, envolveu-se, na década de 80, na construção democrática da escola pública popular na América Latina. A última grande experimentação prática de suas idéias deu-se no início da década de 90 em São Paulo (Brasil), onde ele foi Secretário de Educação, promovendo a formação crítica do professor, a educação de adultos, a reestruturação curricular e a interdisciplinaridade.

O que oferecia ele de tão original para ser-se conhecido internacionalmente?

Numa época de educação burocrática, formal e impositiva ele se contrapôs a ela, levando em conta as necessidades e problemas da comunidade e as diferenças étnico-culturais, sociais, de gênero, e os diferentes contextos. Ele procurava empoderar as pessoas mais necessitadas para que elas mesmas pudessem tomar suas próprias decisões, autonomamente. Seu método pedagógico aumentava a participação ativa e consciente.

A seguir, depois de apresentar brevemente alguns dados biobibliográficos de Paulo Freire, procurarei mostrar os temas centrais de sua teoria e os passos do seu método pedagógico, mostrando o pouco do seu legado como educador, enfocando principalmente a práxis político-pedagógica dos seus últimos anos dentro do contexto educacional brasileiro.

1. Apresentando Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no dia 19 de setembro de 1921, no Recife, Pernambuco (Brasil), uma das regiões mais pobres do país, onde, logo cedo, pôde experimentar as dificuldades de sobrevivência das classes populares. Trabalhou inicialmente no SESI (Serviço Social da Indústria) e no Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife. Ele foi quase tudo o que deve ser como educador, de professor de escola a criador de idéias e "métodos". Sua filosofia educacional expressou-se primeiramente em 1958 na sua Tese de concurso para a Universidade do Recife, e, mais tarde, como professor de História e Filosofia da Educação daquela Universidade, bem como em suas primeiras experiências de alfabetização como a de Angicos, Rio Grande do Norte, em 1963, precedida por trabalhos desenvolvidos tanto em Pernambuco quanto no Estado da Paraíba.

A coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação que identifica a alfabetização com um processo de conscientização, capacitando o oprimido tanto para a aquisição dos instrumentos de leitura e escrita quanto para a sua libertação, fez dele um dos primeiros brasileiros a serem exilados. A metodologia por ele desenvolvida foi muito utilizada no Brasil em campanhas de alfabetização conscientizadora e, por isso, ele foi acusado de subverter a ordem instituída. Foi preso após o Golpe Militar de 1964 e, depois de 72 dias de reclusão, foi convencido a deixar o país. Exilou-se primeiro no Chile, onde, encontrando um clima social e político favorável ao desenvolvimento de suas idéias, desenvolveu, durante 5 anos, trabalhos em programas de educação de adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (ICIRA). Foi aí que escreveu, em 1968, a sua principal obra: Pedagogia do oprimido.

Em 1969, trabalhou como professor na Universidade de Harvard, em estreita colaboração com numerosos grupos engajados em novas experiências educacionais tanto em zonas rurais quanto urbanas. Durante os 10 anos seguintes, foi Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça). Nesse período, deu consultoria educacional junto a vários governos do "Terceiro Mundo", principalmente na África.

Em 1980, depois de 16 anos de exílio, retornou ao Brasil para "reaprender" seu país, como afirmou na época. Lecionou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, tornou-se Secretário de Educação no Município de São Paulo, maior cidade do Brasil. Durante seu mandato, fez um grande esforço na implementação de movimentos de alfabetização, de revisão curricular e empenhou-se na recuperação salarial dos professores.

Casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve cinco filhos. Após a morte de sua primeira esposa, casou-se com Ana Maria Araújo Freire, uma ex-aluna.

Em Paulo Freire, conviveram sempre presentes tanto o senso de humor e quanto a não menos constante indignação contra todo tipo de injustiça.

Paulo Freire é autor de muitas obras. Entre elas: Educação: prática da liberdade (1967), Pedagogia do oprimido (1968), Cartas à Guiné-Bissau (1975), Pedagogia da esperança (1992), À sombra desta mangueira (1995). Foi reconhecido mundialmente pela sua práxis educativa através de numerosas homenagens. Além de ter seu nome adotado por muitas instituições, é cidadão honorário de várias cidades no Brasil e no exterior. A Paulo Freire foi outorgado o título de doutor Honoris Causa por vinte e sete universidades. Por seus trabalhos na área educacional, recebeu, entre outros, os seguintes prêmios: "Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento" (Bélgica, 1980); "Prêmio UNESCO da Educação para a Paz" (1986) e "Prêmio Andres Bello" da Organização dos Estados Americanos, como Educador do Continentes (1992). No dia 10 de abril de 1997, lançou seu último livro, intitulado "Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa". Paulo Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo, vítima de um infarto agudo do miocárdio.

Vivi e trabalhei intimamente com Paulo Freire durante 23 anos. Alguns dias antes de sua morte estávamos discutindo vários projetos para serem desenvolvidos pelo Instituto Paulo Freire (IPF), que foi, para ele um espaço de discussão nas novas perspectivas educacionais. Pretendia oferecer vários cursos, principalmente para estudantes estrangeiros. Morreu em plena atividade intelectual, com um livro para terminar e muitos projetos a caminho.

2. Originalidade do "Método Paulo Freire"

Com certeza, podemos dizer que o pensamento de Paulo Freire é um produto existencial e histórico. Ele forjou seu pensamento na luta, na práxis, entendida esta como "ação + reflexão", como ele a definia. Ele nos dizia que práxis nada tinha a ver com a conotação freqüente de "prática" em sua acepção pragmatista ou utilitária. Para ela práxis é ação transformadora.

Eu não vou recordar aqui a sua longa trajetória de educador, bastante conhecida. Todavia, quero enfatizar o quanto foi importante para a constituição da sua teoria do conhecimento, a leitura do contexto onde nasceu e viveu, durante a década de 50, no Nordeste brasileiro e o contexto latino-americano da época do exílio no Chile, na década de 60.

A sociedade brasileira e latino-americana da década de 60 pode ser considerada como o grande laboratório onde se forjou aquilo que ficou conhecido como o "Método Paulo Freire". A situação de intensa mobilização política desse período teve uma importância fundamental na consolidação do pensamento de Paulo Freire, cujas origens remontam à década de 50. O momento histórico que Paulo Freire viveu no Chile foi fundamental para explicar a consolidação da sua obra, iniciada no Brasil. Essa experiência foi fundamental para a formação do seu pensamento político-pedagógico. No Chile, ele encontrou um espaço político, social e educativo muito dinâmico, rico e desafiante, permitindo-lhe reestudar seu método em outro contexto, avaliá-lo na prática e sistematizá-lo teoricamente.

Por outro lado, na constituição do seu método pedagógico, Paulo Freire fundamentava-se nas ciências da educação, principalmente a psicologia e a sociologia; teve importância capital a metodologia das ciências sociais. A sua teoria da codificação e da descodificação das palavras e temas geradores (interdisciplinaridade), caminhou passo a passo com o desenvolvimento da chamada pesquisa participante.

O que chamou a atenção dos educadores e políticos da época foi o fato de que o método Paulo Freire "acelerava" o processo de alfabetização de adultos. Paulo Freire não estava aplicando ao adulto alfabetizando o mesmo método de alfabetização aplicado às crianças. É verdade, outros já estavam pensando da mesma forma. Todavia, foi ele o primeiro a sistematizar e experimentar um método inteiramente criado para a educação de adultos.

De maneira esquemática, podemos dizer que o "Método Paulo Freire" consiste de três momentos dialética e interdisciplinarmente entrelaçados: 

a) A investigação temática, pela qual aluno e professor buscam, no universo vocabular do aluno e da sociedade onde ele vive, as palavras e temas centrais de sua biografia. Esta é a etapa da descoberta do universo vocabular, em que são levantadas palavras e temas geradores relacionados com a vida cotidiana dos alfabetizandos e do grupo social a que eles pertencem. Essas palavras geradoras são selecionadas em função da riqueza silábica, do valor fonético e principalmente em função do significado social para o grupo. A descoberta desse universo vocabular pode ser efetuada através de encontros informais com os moradores do lugar em que se vai trabalhar, convivendo com eles, sentido suas preocupações e captando elementos de sua cultura.

b) A tematização, pela qual professor e aluno codificam e decodificam esses temas; ambos buscam o seu significado social, tomando assim consciência do mundo vivido. Descobrem-se assim novos temas geradores, relacionados com os que foram inicialmente levantados. É nesta fase que são elaboradas as fichas para a decomposição das famílias fonéticas, dando subsídios para a leitura e a escrita.

c) A problematização, na qual eles buscam superar uma primeira visão mágica por uma visão crítica, partindo para a transformação do contexto vivido. Nesta ida e vinda do concreto para o abstrato e do abstrato para o concreto, volta-se ao concreto problematizando-o. Descobrem-se assim limites e possibilidades existenciais concretas captadas na primeira etapa. Evidencia-se a necessidade de uma ação concreta, cultural, política, social, visando à superação de situações-limite, isto é, de obstáculos ao processo de hominização. A realidade opressiva é experimentada como um processo passível de superação. A educação para a libertação deve desembocar na práxis transformadora. 

Tema Gerador: Os seres humanos e o planeta

Sobreviverão?

Estudos da realidade (inclui atividades dos estudantes) Organização do

Conhecimento (identifica o conteúdo básico, conceitos, e temas) 
Aplicação do Conhecimento

(projetos e tarefas)

Arte-educação · Artes visuais: colagem, pintura, modelagem
· Atividades musicais

· Entendendo paisagens: naturais e construídas
Semana de atividades de arte moderna/ Música folclórica como forma de questionar a realidade
Artes visuais/ Música/ Poesia/ Dramatizações 
História · Questionários
· Entrevistas

· Debates
Indústria/ A luta entre as classes sociais/ Patrão de vida/ Poluição/ Discriminação/ Colonização/ Direitos Humanos
Ensaios / Projetos em Grupo

Idioma (Linguagem e Artes) · Folder, avisos, etc.
· Jornais
Conferências/ Escrita/ Análise lingüística/ análise de campanhas de publicidade e padrão de consumo
Projetos em grupo

Ciências · Debates
· Entrevistas

· Discussões em grupo
Meio Ambiente/ Reciclagem/ Poluição/ Saneamento básico/ Conservação/ O corpo Corpo humano e reprodução/ Espaço mental e físico/ Nutrição
Projetos em grupo/ escritos referentes a temas comunitários

Matemática · Questionários
· Debates
Custo de vida/ Computação básica/ Sistemas monetários/ Porcentagens-Frações
Colocando em tabelas o custo de vida, a inflação, dados sobre salários / Análise escrita

Geografia · Entrevistas
· Debates

· Reportagens

· Mapas
Grupos sociais/ Classes sociais/ Desemprego/ Violência/ Espaço Social e Físico/ Migração e explosão

da população
Desenhando mapas/ Projetos em grupos sobre a urbanização dos bairros

Educação Física · Questionários
· Entrevistas

· Debates
Conhecimento do corpo/ Tempo livre
Demonstração de hábitos saudáveis

Fonte: Maria del Pilar O’Cádiz, Pia Linquist Wong, Carlos Alberto Torres, Education and Democracy: Paulo Freire, Social Movements and Educational Reform in São Paulo, Westview, 1998, pp. 201-202.

Os educadores entrevistaram pais e estudantes, catalogaram as atividades e serviços dos bairros, visitaram centros e coletaram informações. Na coleta de dados levaram em consideração o nível geral da educação entre as famílias dos bairros e organizaram e aplicaram este conhecimento nas atividades da escola, construindo, na prática, o que Paulo Freire chamava, nos primeiros documentos da Secretaria de Educação de "Escola Pública Popular".

No início dos anos 60 o que chamou a atenção dos educadores e dos políticos era o fato de que o método Paulo Freire "acelerava" o processo de alfabetização dos adultos. Paulo Freire não estava usando os mesmos métodos com os adultos que eram usados para com as crianças. É verdade, outros já haviam pensando nessa idéia. Porém, Paulo Freire foi o primeiro a sistematizar e experimentar um método criado inteiramente para a educação de adultos.

As teorias construtivistas atuais também se apoiam no significado da experiência vivida, no saber do aluno. Portanto é preciso conhecê-lo e sistematizá-lo. Contudo, o construtivismo freireano vai além da pesquisa e da tematização. O construtivismo freireano mostrou não só que todos podem aprender (Piaget), mas que todos sabem alguma coisa e que o sujeito é responsável pela construção do conhecimento e pela ressignificação do que aprende. Aprender e alfabetizar-se é um ato tão natural quanto comer e andar. Mas a criança, o jovem e o adulto só aprendem quando tem um projeto de vida, onde o conhecimento é significativo para eles. É o sujeito que aprende através de sua própria ação transformadora sobre o mundo. É ele que constrói suas próprias categorias de pensamento, organiza o seu mundo e transforma o mundo. "O professor deve ensinar. É preciso fazê-lo. Só que ensinar não é transmitir conhecimento. Para que o ato de ensinar se constitua como tal, é preciso que o ato de aprender seja precedido do, ou concomitante ao, ato de apreender o conteúdo ou o objeto cognoscível, com que o educando se torna produtor também do conhecimento que lhe foi ensinado" (Paulo Freire, Professora sim, tia não, p. 188).

A obra de Paulo Freire é interdisciplinar e pode ser vista tomando-o como pesquisador e cientista, ou como educador. Contudo, essas duas dimensões implicam numa outra: Paulo Freire não as separa da política. Paulo Freire deve ser considerado também como um político. Essa é a dimensão mais importante da sua obra. Ele não pensa a realidade como um sociólogo que procura apenas entendê-la. Ele busca, nas ciências, elementos para, compreendendo mais cientificamente a realidade, poder intervir de forma mais eficaz nela. Por isso, ele pensa a educação ao mesmo tempo como ato político, como ato de conhecimento e como ato criador. Todo o seu pensamento tem uma relação direta com a realidade. Essa é sua marca. Ele não se comprometeu com esquemas burocráticos, sejam eles esquemas do poder político, sejam esquemas do poder acadêmico. Comprometeu-se, acima de tudo, com uma realidade a ser transformada. Paulo Freire propõe uma nova concepção da relação pedagógica. Não se trata de conceber a educação apenas como transmissão de conteúdos por parte do educador. Pelo contrário, trata-se de estabelecer um diálogo. Isso significa que aquele que educa está aprendendo também. A pedagogia tradicional também afirmava isso, só que em Paulo Freire o educador também aprende do educando da mesma maneira que este aprende dele. Não há ninguém que possa ser considerado definitivamente educado ou definitivamente formado. Cada um, a seu modo, junto com os outros, pode aprender e descobrir novas dimensões e possibilidades da realidade na vida. A educação torna-se um processo de formação comum e permanente. No pensamento de Paulo Freire, tanto os alunos quanto o professor são transformados em pesquisadores críticos. Os alunos não são uma lata vazia para ser enchida pelo professor. Mas, Paulo Freire pode ainda ser lido pelo seu gosto pela liberdade. Essa seria uma leitura libertária. Como muitos dos seus intérpretes afirmam, a tese central da sua obra é a tese da liberdade-libertação. A liberdade é a categoria central de sua concepção educativa desde suas primeiras obras. A libertação é o fim da educação. A finalidade da educação será libertar-se da realidade opressiva e da injustiça. A educação visa à libertação, à transformação radical da realidade, para melhorá-la, para torná-la mais humana, para permitir que os homens e as mulheres sejam reconhecidos como sujeitos da sua história e não como objetos. A libertação, como objetivo da educação, situa-se no horizonte de uma visão utópica da sociedade e do papel da educação. A educação, a formação, devem permitir uma leitura crítica do mundo. O mundo que nos rodeia é um mundo inacabado e isso implica a denúncia da realidade opressiva, da realidade injusta (inacabada) e, consequentemente, de crítica transformadora, portanto, de anúncio de outra realidade. O anúncio é necessário como um momento de uma nova realidade a ser criada. Essa nova realidade do amanhã é a utopia do educador de hoje.

Podemos citar várias instâncias que demonstram a coerência entre a teoria e a prática de Paulo Freire. Para ilustrá-la daremos abaixo um exemplo: seu trabalho como administrador público (1989-1991), à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (Brasil).

3. As experiências de Paulo Freire como Secretário de Educação em São Paulo (1989-1991)

Para os que conheciam de perto Paulo Freire, não foi surpresa a sua capacidade administrativa. O segredo dele foi saber governar de forma democrática. Nos quase dois anos e meio à frente da Secretaria da educação, ele conseguiu criar uma equipe de cinco ou seis auxiliares que podiam trabalhar com muita autonomia e podiam substituí-lo em qualquer emergência. Existia apenas uma reunião semanal em que se discutiam as linhas gerais da política da Secretaria. Se fosse necessário, novos rumos eram tomados. Paulo Freire defendia ardorosamente suas opiniões, mas sabia trabalhar em equipe, muito longe do espontaneísmo de que havia sido acusado. Ele tinha autoridade, mas exercia-a de forma democrática. Enfrentava situações conflituosas com muita paciência. Dizia que o trabalho de mudança na educação exigia paciência histórica porque a educação é um processo a longo prazo.

Quais as mudanças estruturais mais importantes introduzidas nas escolas da rede municipal de ensino por Paulo Freire?

É ele mesmo quem responde eu seu livro sobre a sua experiência à frente da Secretaria (A educação na cidade, pp. 79-80): "as mudanças estruturais mais importantes introduzidas na escola incidiram sobre a autonomia da escola". Foram restabelecidos os conselhos de escola e os grêmios estudantis. No entanto, continua Paulo Freire, "o avanço maior ao nível da autonomia da escola foi o de permitir no seio da escola a gestação de projetos pedagógicos próprios que com apoio da administração pudessem acelerar a mudança da escola".

Para ilustrar esse processo de mudança vou apresentar três exemplos: o programa de formação permanente, o programa de alfabetização de jovens e adultos e a prática da interdisciplinaridade.

1º O programa de formação permanente do professor.

Desde o início da administração, Paulo Freire insistia que estava profundamente empenhado na questão da formação permanente dos educadores. Seu programa de formação do magistério foi orientado pelos seguintes princípios (A educação na cidade, p. 80):

a) o educador é o sujeito da sua prática, cumprindo a ele criá-la e recriá-la através da reflexão sobre o seu cotidiano.

b) a formação do educador deve ser permanente e sistematizada, porque a prática se faz e refaz.

c) a prática pedagógica requer a compreensão da própria gênese do conhecimento, ou seja, de como se dá o processo de conhecer.

d) o programa de formação dos educadores é condição para o processo de reorientação curricular da escola.

Esse programa de formação dos educadores teve como eixos básicos:

a) a fisionomia da escola que se quer, enquanto horizonte da proposta pedagógica;

b) a necessidade de suprir elementos de formação básica aos educadores nas diferentes áreas do conhecimento humano;

c) a apropriação, pelos educadores, dos avanços científicos do conhecimento humano que possam contribuir para a qualidade da escola que se quer.

Com esse programa, Paulo Freire queria formar professores para uma nova postura pedagógica, considerando sobretudo a tradição autoritária brasileira. O Brasil nasceu autoritário. Já tem quase 500 anos de tradição autoritária. Não se pode esperar que em poucos anos isso seja superado. Por isso, Paulo Freire pôs à prova a sua conhecida paciência pedagógica, com decisão política, competência técnica, amorosidade e sobretudo com o exercício da democracia. Acabou tendo êxito nessa sua tarefa. A formação do educador ultrapassa, transcende, os cursos explicativos teóricos em torno da democracia. A formação se dá através da prática, da real participação. A prática da democracia vale muito mais do que um curso sobre democracia.

2º O programa de alfabetização de jovens e adultos.

Além do intenso programa de formação do educador, Paulo Freire deu início a um movimento de alfabetização em parceria com os movimentos populares, ao lado da expansão do ensino noturno e do ensino supletivo. Antes mesmo de assumir a Secretaria de educação, Paulo Freire tinha a intenção de sugerir à nova Prefeita um projeto de alfabetização. Convidado, propôs imediatamente um projeto que se chamaria MOVA-SP (Movimento de Alfabetização da Cidade de São Paulo), inicialmente sob a coordenação de Pedro Pontual, estruturado em estreita colaboração com os Movimentos sociais e populares da capital que criaram, para isso, o "Fórum dos movimentos populares de alfabetização de adultos da cidade de São Paulo" (Moacir Gadotti e José E. Romão (orgs), Educação de jovens e adultos: teoria, prática e proposta, pp. 85-90). 

A Secretaria de Educação, através de convênios com as entidades integrantes deste Fórum, oferecia os recursos financeiros e técnicos. Cabia ao Fórum, junto com a Secretaria, definir os critérios para celebração de convênios nos quais as entidades conveniadas se responsabilizavam pela criação dos núcleos de alfabetização, locação de salas, material didático e pagamento aos alfabetizadores e supervisores. 

Esse projeto, iniciado efetivamente em janeiro de 1990, teve grande repercussão tanto na cidade de São Paulo como em outros Estados, pela proposta de fortalecimento dos movimentos populares. Foi um dos raros exemplos de parceria entre a Sociedade Civil e o Estado. É evidente que nessas circunstâncias a relação não é sempre harmoniosa. Ela é perpassada por tensões. Mas essa é a condição necessária para um trabalho partidário entre o Estado e os movimentos populares.

O MOVA-SP não impôs uma única orientação metodológica ou, como se costuma dizer, o "Método Paulo Freire". Procurou-se manter o pluralismo, só não se aceitando métodos pedagógicos anti-científicos e filosóficos autoritários ou racistas. Mesmo sem impor nenhuma metodologia, foram sustentados os princípios político-pedagógicos da teoria educacional de Paulo Freire, sintetizados numa concepção libertadora de educação, evidenciando o papel da educação na construção de um novo projeto histórico, a teoria do conhecimento que parte da prática concreta na construção do saber, o educando como sujeito do conhecimento e a compreensão da alfabetização não apenas como um processo lógico, intelectual, mas também profundamente afetivo e social. 

Para que um movimento de alfabetização se constitua num esforço coletivo, é necessário que a experiência seja a fonte primordial do conhecimento. Do contrário, ela se reduz apenas a um conhecimento intelectual que não leva à formação crítica da consciência e nem ao fortalecimento do poder popular, isto é, não leva à criação e ao desenvolvimento das organizações populares. 

Apesar da descontinuidade administrativa, característica de quase todas as administrações públicas, no Brasil, o Programa MOVA-SP foi avaliado positivamente pelos seus organizadores, bem como por estudos realizados por pesquisadores e observadores estrangeiros. Ele serviu de referência para outras experiências e se constituiu num processo muito significativo de formação para todos os que o promoveram. A avaliação realizada mostrou que ele trouxe ganhos relevantes para a formação dos educadores e, sobretudo, para os educandos. Mesmo extinto pela nova administração (1993), o MOVA continuou em outras municipalidades e espaços de formação, Universidades (PUC-SP), sindicatos (CUT) e Oganizações Não-Governamentais como o Instituto Paulo Freire.

O MOVA-SP fez parte de uma estratégia de ação cultural voltada para o resgate da cidadania: formar governantes, formar pessoas com maior capacidade de autonomia intelectual, multiplicadores de uma ação social libertadora. O MOVA-SP estava contribuindo com esse objetivo ao fortalecer os movimentos sociais populares e estabelecer novas alianças entre Sociedade Civil e Estado.

A importância dos Movimentos Populares e Sociais no provimento de programas de alfabetização dos países "em desenvolvimento" é reconhecida por muitas razões, principalmente porque são agências de forte impacto na comunidade. Os movimentos populares conduzem muitas atividades que envolvem a alfabetização de adultos no Brasil.

Tipos de Movimentos Populares no MOVA e

Evolução em termos de Classes, Estudantes, e Movimentos Populares

Tipo de Associação
Número
Porcentagem

Comunidade ou Associação

de Bairros
30
40

Grupos de Educação/ Cultura
13
14

Grupos de Mulheres, Mães, Mulheres Voluntárias
12
16

Grupos Religiosos
11
15

Grupos de Trabalhadores
6
8

Grupos de Direitos Humanos
2
3

Associações Esportivas
1
1

Total
74
100

Evolução do MOVA em termos de Classes, Estudantes, e Movimentos Populares

Tempo
Classes
Estudantes
Movimentos Populares

Fevereiro de 1991
451
9.513
39

Maio de 1991
557
11.853
45

Dezembro de 1991
868
17.766
68

Maio de 1992
920
20.114
69

Junho de 1992
-
21.000
-

Fonte: Nelly P. Stromquist, Literacy for Citizenship: Gender and Grassroots Dynamics in Brazil, Albany, SUNY Press, 1997, pp. 173, 214

As tabelas acima demonstram o sucesso do Programa MOVA. Ele demandou um crescimento permanente em termos de número de classes e de Movimentos envolvidos. Em três anos atendemos cerca de 80 mil alfabetizandos.

3º A prática da interdisciplinaridade.

A enormidade da obra de Paulo Freire e o seu trânsito por várias áreas do conhecimento e da prática nos levam a um outro tema central de sua obra: a interdisciplinaridade. Em 1987 e 1988, Paulo Freire desenvolve o conceito de interdisciplinaridade dialogando com educadores de várias áreas na Universidade de Campinas, empenhados num projeto de educação popular informal. O conceito de interdisciplinaridade surge da análise da prática concreta e da experiência vivida do grupo de reflexão. Essas reflexões foram reunidas por Débora Mazza e Adriano Nogueira e publicada com o título Na escola que fazemos (1988). No ano seguinte, já como Secretário Municipal de São Paulo, Paulo Freire deu início a uma grande reorientação curricular que foi chamada de projeto da interdisciplinaridade. A interdisciplinaridade não é apenas um método pedagógico ou uma atitude do professor. É uma exigência da própria natureza do ato pedagógico.

A ação pedagógica através da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade aponta para a construção de uma escola participativa e decisiva na formação do sujeito social. O educador, sujeito de sua ação pedagógica, é capaz de elaborar programas e métodos de ensino-aprendizagem, sendo competente para inserir a sua escola numa comunidade. O objetivo fundamental da interdisciplinaridade é experimentar a vivência de uma realidade global que se inscreve nas experiências cotidianas do aluno, do professor e do povo e que, na escola tradicional, é compartimentada e fragmentada. Articular saber, conhecimento, vivência, escola, comunidade, meio-ambiente etc., é o objetivo da interdisciplinaridade que se traduz na prática por um trabalho coletivo e solidário na organização do trabalho na escola. Não há interdisciplinaridade sem descentralização do poder, portanto, sem uma efetiva autonomia da escola.

Na tabela abaixo podemos ver o processo que envolve cada momento (fase) no Projeto Interdisciplinaridade e as condições necessárias e os resultados esperados com essa abordagem metodológica.

Fases do Projeto Intedisciplinaridade

Estudo da Realidade
Organização do Conhecimento
Aplicação do Conhecimento

Problematização
Seleção das áreas do conteúdo programático
Implementação do programa que foi organizado

Discussão e histórias dos estudantes, educadores, e comunidade
A realidade e o conhecimento sistematizado
valiação e planejamento para a transformação do estudante, educador, e comunidade

Visitas, Entrevistas
Abordagem do educador e atitude/ Requisitos cognitivos e afetivos
Conhecimento: ação, apropriação, e reconstrução

Questionários, situações significativas, temas geradores
Noções, hipóteses, pressupostos, teorias
Ferramentas: ambientes naturais e construídos, jogos, revistas, livros, etc.

Fonte: Maria del Pilar O'Cádiz, Pia Linquist Wong, Carlos Alberto Torres, Education and Democracy: Paulo Freire, Social Movements and Educational Reform in São Paulo. Westview, 1998, p. 111.

Na minha experiência de trabalhar junto com Freire por mais de duas décadas – particularmente como seu Chefe de Gabinete na administração da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e especialmente coordenando o MOVA-SP – aprendi que devido às condições históricas da centralização e autoritarismo das instituições brasileiras, é necessário buscar a autonomia da escola em todos os níveis. E nisso Paulo Freire estava de acordo. Autonomia não só da escola, mas também do aluno e do professor.

Paulo Freire deixou a Secretaria Municipal de Educação dia 27 de maio de 1991. Depois de quase dois anos e meio, Paulo voltou à sua biblioteca e às suas atividades acadêmicas "à maneira de quem, saindo, fica" , como afirma no epílogo do seu livro A educação na cidade (p. 143). Na verdade, Paulo Freire continuou uma presença ativa na Secretaria, oferecendo sua larga experiência traduzida na prática dos projetos que a Secretaria realizou. Na sua despedida afirmou: "mesmo sem ser mais secretário continuarei junto de vocês de outra forma... Continuem contando comigo na construção de uma política educacional, de uma escola com outra "cara", mais alegre, fraterna e democrática" (A educação na cidade, p. 144).

4. Paulo Freire no contexto das pedagogias contemporâneas

O pensamento de Paulo Freire pode ser relacionado com o de muitos educadores contemporâneos. Podemos encontrar grande afinidade entre Paulo Freire e o revolucionário educador francês Célestin Freinet (1896-1966), na medida em que ambos acreditam na capacidade de o aluno organizar sua própria aprendizagem. Freinet deu enorme importância ao que chamou de "texto livre". Como Paulo Freire, utilizava-se do chamado método global de alfabetização, associando a leitura da palavra à leitura do mundo. Insistia na necessidade, tanto da criança quanto do adulto, de ler o texto entendendo-o. Como Paulo Freire, preocupou-se com a educação das classes populares. Seu método de trabalho incluía a imprensa, o desenho livre, o diálogo e o contato com a realidade do aluno.

Embora Paulo Freire não defenda o princípio da não-diretividade na educação, como faz o psicoterapeuta Carl Rogers (1912-1987), não resta dúvida de que existem muitos pontos comuns nas pedagogias que eles defendem, sobretudo no que diz respeito à liberdade de expressão individual, à crença na possibilidade de os homens resolverem, eles próprios, seus problemas, desde que motivados interiormente para isso. Para Rogers, assim como para Paulo Freire, a responsabilidade da educação está no próprio estudante, possuidor das forças de crescimento e auto-avaliação. A educação deve estar centrada nele, em vez de centrar-se no professor ou no ensino; o aluno deve ser senhor de sua própria aprendizagem. E a aula não é o momento em que se deve despejar conhecimentos no aluno, nem as provas e exames são os instrumentos que permitirão verificar se o conhecimento continua na cabeça do aluno e se este o guarda do jeito que o professor o ensinou. A educação deve ter uma visão do aluno como pessoa inteira, com sentimentos e emoções.

O que tem em comum Paulo Freire com Ivan Illich (1926), o filósofo austríaco?

Nos dois podemos encontrar a crítica da escola tradicional. Entre a burocratização da instituição escolar atual, os dois demandaram que os educadores buscassem seu desenvolvimento próprio e a libertação coletiva para combater a alienação das escolas e propondo o redescobrimento da autonomia criadora. Apesar deste pontos em comum, existem consideráveis divergências. No trabalho de Ivan Illich, podem encontrar um pessimismo em relação à escola. Ele não acredita que a escola tradicional tenha futuro. Por isso seria necessário "desescolarizar" a sociedade. Em Paulo Freire encontramos otimismo. A escola pode mudar e deve ser mudada pois joga um papel importante na transformação social. O que une Illich e Freire é sua crença profunda em revolucionar os conteúdos e a pedagogia da escola atual. Os dois acreditam que essa mudança é ao mesmo tempo política e pedagógica e que a crítica da escola é parte de uma crítica mais ampla à civilização contemporânea.

Desde a tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação da Universidade de Pernambuco, Paulo Freire faz referências a John Dewey (1859-1952), citando-lhe a obra Democracia e educação, publicada no Brasil em 1936. Essa referência não podia deixar de existir, pois Paulo Freire era um grande admirador da pedagogia de Anísio Teixeira (1900-1971), de quem se considera discípulo e com o qual concordava na denúncia do excessivo centralismo, ligado ao autoritarismo e ao elitismo da educação brasileira. Foi Anísio Teixeira quem introduziu o pensamento de Dewey no Brasil.

Como John Dewey (1859-1952), o conhecido filósofo e educador norte-americano, Paulo Freire insiste no conhecimento da vida e da comunidade local. Porém podemos encontrar uma diferença na noção de cultura. Em Dewey, ela é simplificada, pois não envolve a problemática social, racial e étnica, ao passo que, em Paulo Freire, ela adquire uma conotação antropológica, já que a ação educativa é sempre situada na cultura do aluno. O que a pedagogia de Paulo Freire aproveita do pensamento de John Dewey é a idéia de "aprender fazendo", o trabalho cooperativo, a relação entre teoria e prática, o método de iniciar o trabalho educativo pela fala (linguagem) dos alunos. 

Também podemos evidenciar a semelhança de pontos de vista de Paulo Freire e Lev Vygotsky (1896-1934), o pedagogo russo e o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). 

A teoria da escrita de Vygotsky contém uma descrição dos processos internos que caracterizam a produção das palavras escritas. Diz ele que a fonte mental de recursos da escrita é o "discurso interno", que evolui a partir do discurso egocentrado da criança. Vygotsky reconhece que, em todos os discursos humanos, o indivíduo muda e desenvolve o discurso interno com a idade e a experiência. A linguagem é tão extraordinariamente importante na sofisticação cognitiva crescente das crianças quanto no aumento de sua afetividade social, pois a linguagem é o meio pelo qual a criança e os adultos sistematizam suas percepções.

Embora Vygotsky e Freire tenham vivido em tempos e hemisférios diferentes, a abordagem de ambos enfatiza aspectos fundamentais, relativos a mudanças sociais e educacionais que se interpenetram. Enquanto Vygotsky enfoca a dinâmica psicológica, Freire se concentra no desenvolvimento de estratégias pedagógicas e na análise da linguagem.

Para Piaget o papel da ação é fundamental para o desenvolvimento da criança porque é a característica essencial do pensamento lógico para ser operativo. Piaget sustenta que aprendemos somente quando queremos e somente quanto o que aprendemos é significativo para nós mesmos. Paulo Freire estava de acordo com essa tese de Piaget e insistia: necessitamos desenvolver a "curiosidade" do aprendiz para poder desenvolver o ato de aprendizagem. Quando separamos a produção do conhecimento do descobrimento do conhecimento que já existe, as escolas podem ser facilmente transformadas em lojas de venda de conhecimento.

Paulo Freire foi imfluenciado de diferentes maneiras: seu pensamento humanista foi inspirado no personalismo de Emmanuel Mounier (1905-1950) e pelo existencialismo (Martin Buber), pela fenomenologia (Georg Hegel) e pelo Marxismo (Antonio Gramsci e Jürgen Habermas). Em todos casos, não se pode dizer que Paulo Freire tenha sido eclético. Ele integra os elementos fundamentais destas doutrinas filosóficas sem repeti-las de uma forma mecânica ou preconceituosa.

A pedagogia de Paulo Freire adquiriu sentido universal a partir da relação entre oprimido e opressor, demonstrando que isso ocorre em todo o mundo. Suas teorias, por outro lado, têm sido enriquecidas por muitas e variadas experiências em muitos países. Além dos países em que o próprio Paulo Freire trabalhou diretamente, muitos outros tem "aplicado" suas idéias e seu método com resultados muito positivos.

Entre as intuições originais do paradigma da educação popular que ele inspirou, podemos destacar:

a educação como produção e não meramente como transmissão do conhecimento; 
a defesa de uma educação para a liberdade, pré-condição da vida democrática; 
a recusa do autoritarismo, da manipulação, da ideologização que surge também ao estabelecer hierarquias rígidas entre o professor que sabe (e por isso ensina) e o aluno que tem que aprender (e por isso estuda); 
a defesa da educação como um ato de diálogo no descobrimento rigoroso, porém, por sua vez, imaginativo, da razão de ser das coisas; 
a noção de uma ciência aberta às necessidades populares e 
um planejamento comunitário e participativo. 
A força da obra de Paulo Freire não está na sua teoria do conhecimento mas em ter insistido na idéia de que é possível, urgente e necessário mudar as coisas. Ele não só convenceu tantas pessoas em tantas partes do mundo pelas suas teorias e práticas, mas também porque despertava nelas a capacidade de sonhar com uma realidade mais humana, menos feia e mais justa. Ele foi uma espécie de guardião da utopia. Deixou-a como legado. E isso não serve apenas para os países pobres, mas também para os países ricos.

5. Raízes, asas e sonhos

As idéias desafiantes de Paulo Freire e suas repercussão mundial não agradaram a todos. Apesar de sua enorme capacidade de diálogo e sua humildade, ele foi criticado, particularmente pelos conservadores. Paulo Freire não é apenas o educador mais lido hoje no Brasil. Ele tem outra fama: a de ter sido o educador que recebeu o maior número de rótulos. Ele foi chamado de "nacional desenvolvimentista", "escolanovista popular", "indutivista", "esponteneista", "não-diretivista", "neo-anarquista católico" etc.

- Como Paulo Freire reage diante das críticas à sua pessoa ou à sua obra?

Os ataques à sua pessoa são raríssimos porque suas idéias podem gerar polêmica, mas não a sua pessoa. Sua personalidade era transparente. Não há lugar para a hipocrisia. Não respondia a críticas pessoais. Também não polemizava com os críticos à sua obra. Paulo Freire acreditava que o humor era uma arma pedagógica progressista, mas a polêmica não. O humor é construtivo e a polêmica, muitas vezes, destrutiva. Por isso, não polemizou com nenhum de seus críticos. 

Considerava as críticas positivamente e procurava aprender com elas. Quando respondia, indiretamente, em seus livros - e isso ele o fez sistematicamente - ele procurava, antes de mais nada, contextualizar as suas obras, mostrando que ele era filho do seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que existe uma evolução no seu pensamento em que ia vai superando certas "ingenuidades" cometidas anteriormente, como ele mesmo afirma na Pedagogia da esperança (p. 67).

Mas existem também críticas que provêem de leituras muito diferentes e até contraditórias da própria obra de Paulo Freire. Leituras legítimas e sérias. Contudo, neste caso, Paulo Freire tinha o direito de discordar dessas leituras e não se reconhecer nelas.

Certos críticos conservadores afirmam que ele não tem uma teoria do conhecimento porque não estuda as relações entre o sujeito do conhecimento e o objeto. Ele se interessaria apenas pelo produto. Isso não é verdade: antes de mais nada, o seu pensamento funda-se numa explícita teoria antropológica do conhecimento. Outros o acusam de autoritarismo afirmando que o seu método supõe a transformação da realidade e nem todos desejam transformá-la. Portanto, seria um método não científico (porque não aplicável universalmente). Seu método seria autoritário na medida em que ele obriga a todos a participarem na transformação. É claro que essa crítica ignora que Paulo Freire não aceita a idéia de uma teoria pura - para ele uma ilusão - mas numa teoria crítica enraizada numa filosofia social e política. Ele rejeita a idéia da neutralidade científica - como recusa o academicismo - e argumenta que os conservadores, sobre a capa da neutralidade política de uma teoria pura escondem a sua ideologia conservadora.

Qual é o legado que Paulo Freire nos está deixando?

Em primeiro lugar, ele nos deixou sua vida, uma rica biografia. Paulo nos encantou com a sua ternura, sua doçura, seu carisma, sua coerência, seu compromisso, sua seriedade. Suas palavras e suas ações foram palavras e ações de luta por um mundo "menos feio, menos malvado, menos desumano". Ao lado do amor e da esperança, ele também nos deixou um legado de indignação diante da injustiça. Diante dela, dizia que não podemos "adocicar" nossas palavras.

Além do testemunho de uma vida de compromisso com a causa dos oprimidos, ele nos deixou uma imensa obra, estampada em muitas edições de seus livros, em artigos e vídeos espalhados pelo mundo. Nela se encontra uma pedagogia revolucionária. A pedagogia conservadora humilha o aluno. A pedagogia freireana, a "pedagogia do diálogo", deu dignidade a ele, respeitando o educando e colocando o professor ao lado dele - com a tarefa de orientar e dirigir o processo educativo - como um ser que também busca. Como o aluno, o professor é também um aprendiz. Esse é o legado de Freire.

No desenvolvimento da sua teoria da educação, Paulo Freire conseguiu, de um lado, desmistificar os sonhos do pedagogismo dos anos 60, que, pelo menos na América Latina, sustentava a tese de que a escola tudo podia, e, de outro lado, conseguiu superar o pessimismo dos anos 70, para o qual a escola era meramente reprodutora do status quo. Fazendo isso - superando o pedagogismo ingênuo e o pessimismo negativista - conseguiu manter-se fiel à utopia, sonhando sonhos possíveis. Fazer hoje o possível de hoje para amanhã fazer o impossível de hoje.

Paulo Freire foi um ser humano completo. Doce guerreiro das palavras, visionário, acreditava na importância da escola, do saber, da palavra, da cultura, do educador. Confessou certa vez que "não tinha vergonha de ser professor". Como um plantador do futuro, ele sempre será lembrado porque nos deixou raízes, asas e sonhos como herança. Como criador de espíritos, a melhor maneira de homenageá-lo é reinventá-lo. Não copiá-lo. É levar adiante o esforço de uma educação com uma nova qualidade para todos. Essa nova qualidade não será medida pela quantidade absorvida de conteúdos técnico-científicos apenas, mas, pela produção de um tipo novo de conhecimento, "molhado de existência" e de história, um conhecimento que deve ser, acima de tudo, uma ferramenta de mudança das condições de vida daqueles que não têm acesso à existência plena. Ele nos deixou teorias e exemplos que nos podem levar muito além de onde estamos hoje. Como disse um professor logo que ouviu falar de seu falecimento "ele nos deixou mais pobres porque partiu, mas estamos mais ricos porque ele existiu".

Dar continuidade a Freire, não significa tratá-lo como um "Totem", ao qual não se pode tocar mas se deve apenas adorar; não significa também tratá-lo como um "gurú", que deve ser seguido por discípulos, sem questioná-lo. Nada menos freireano do que esta idéia. Paulo Freire foi, sobretudo, um criador de espíritos. Por isso deve ser tratado como um grande educador popular. Adorar Freire como um totem, significa destruir Freire como educador. Por isso não devemos repetir Freire, mas "reinventá-lo", como ele mesmo dizia. Para esta tarefa, não designou esta ou aquela pessoa ou instituição. Esta tarefa ele deixou a todos nós, tão claramente expressa já no Pedagogia do oprimido, quando o dedicou "aos esfarrapados do mundo, e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam".