Skip to Content

Entrevista:Timothy Ireland

Timothy Ireland é responsável pela área de EJA da Unesco.

Timothy Ireland: precisamos desenvolver métodos que tratem educandos como adultos e fortaleçam sua auto-estima.

 

Timothy Ireland é responsável pela área de EJA da Unesco.

Autor:Arquivo pessoal

 Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atualmente cedido para a Representação da Unesco em Brasília (DF), Timothy Ireland é responsável pela área de Educação de Jovens e Adultos desse órgão internacional.

Natural da Inglaterra, ele é formado em letras, Ph.D. pela Universidade de Manchester, mestre em Educação de Adultos pela mesma instituição, e mestre em letras (língua e literatura inglesas) pela Universidade de Edimburgo.

No Brasil, entre outras atividades, coordenou o Projeto Escola Zé Peão, um projeto educacional para operários da construção civil, em João Pessoa, durante 14 anos. Também foi um dos fundadores do Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Estado da Paraíba em 1999, que coordenou até 2004. De 2004 a 2007, foi Diretor Nacional de Educação de Jovens e Adultos na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC).

Em entrevista ao Jornal do Professor, Timothy Ireland salienta que jovens e adultos não podem ser tratados como crianças crescidas, pois possuem uma bagagem de experiências e conhecimentos acumulados. Para o professor, é necessário que se desenvolvam métodos de ensino e aprendizagem que tratem os alunos adultos como adultos e ajudem a fortalecer sua auto-estima.

“Ao partir do que o educando sabe, abrimos a possibilidade de uma nova construção baseada em diálogo e uma relação mais horizontal entre o educador e educando, reconhecendo que em várias áreas de conhecimento o próprio educando possui mais acúmulo que o seu educador”, acredita.

Jornal do Professor – O que diferencia a Educação de Jovens e Adultos do antigo Supletivo? Qual é a identidade da EJA?

Timothy Ireland - O conceito de EJA como uma forma de suplência é antigo no Brasil. Contudo, a forma mais elaborada se encontra na Lei n. 5692/71, que criou os ensinos de 1º e 2º Graus e sistematizou o ensino supletivo, em termos de exames e cursos. Nessa lei de 1971 o ensino supletivo ganhou um capítulo próprio com cinco artigos. Embora o Conselheiro Valnir Chagas tenha previsto no seu parecer 699/72 quatro funções do ensino supletivo – a suplência, o suprimento, a aprendizagem e a qualificação – a sua finalidade mais marcante foi a de “suprir a escolarização regular para os adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído na idade própria” num sistema desenvolvido por fora do ensino regular de 1º e 2º graus. O ensino supletivo era um sistema paralelo ao regular em que a aferição de conhecimento e certificação poderia se dar também fora do processo presencial de ensino-aprendizagem, por meio de exames. Os exames supletivos se organizavam nos vários sistemas de acordo com as normas baixadas pelos respectivos Conselhos de Educação.

A educação de jovens e adultos que conhecemos hoje traz as marcas de vários avanços conquistados, primeiramente na Constituição de 1988, em que o ensino fundamental foi estabelecido como direito público subjetivo, inclusive para os que não tiveram oportunidade de cursá-lo ou concluí-lo na ‘idade própria’ e depois na Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 5694/96), em que se garante a “oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores as condições de acesso e permanência escola”.

Assim, além de ser direito de todo jovem e adulto independentemente de idade, a LDB estabelece a educação de jovens e adultos como uma modalidade da educação básica regular que deve se adequar às necessidades de aprendizagem e disponibilidades dos educandos entendidos predominantemente como trabalhadores.

No parecer (CNE/CEB no 11/2000) que o Conselheiro Jamil Cury elaborou para fundamentar a Resolução do Conselho Nacional de Educação que trata das Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos, há uma definição que nos permite entender melhor a natureza e especificidade da EJA. Segundo o relator “A EJA é uma modalidade da educação básica, nas suas etapas fundamental e média. O termo modalidade é diminutivo latino de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria”.

JP – Qual é a função da EJA? Ela deve ocorrer em uma faixa etária determinada ou deve ser um processo contínuo, ao longo da vida?

TI - Nas discussões internacionais desde a década de 70 se tem entendido a educação de adultos como parte de um processo maior que tem sido chamado diferentemente de educação permanente, educação continuada e, mais recentemente, de aprendizagem ao longo da vida. O Marco de Ação de Belém, aprovado durante a Sexta Conferência Internacional de Educação de Adultos – VI Confintea, realizada em Belém do Pará, em dezembro de 2009, deixa claro o sentido amplo da aprendizagem ao longo da vida como “um marco conceitual e um principio organizador de todas as formas de educação, baseada em valores inclusivos, emancipatórios, humanistas e democráticos, sendo abrangente e parte integrante da visão de uma sociedade do conhecimento”. No sentido amplo, o conhecido Relatório Delors, reafirmou quatro funções ou pilares da aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver com os outros. Vamos voltar mais tarde, na nossa conversa, para falar dessas funções.

Assim a educação de adultos, ou educação de jovens e adultos como é mais conhecido no Brasil e na América Latina, representa um componente significativo do processo de aprendizagem ao longo da vida que abrange “um vasto leque de conteúdos – aspectos gerais, questões vocacionais, alfabetização e educação da família, cidadania e muitas outras áreas”.

No Brasil, a EJA tem sido vista, de um lado e mais fortemente, como o direito a escolaridade em reconhecimento da grande dívida histórica para com os jovens e adultos não escolarizados. Ainda há 14 milhões de jovens e adultos acima de 15 anos que não sabem ler e escrever e mais de 60 milhões que não concluíram o ensino fundamental. Mas, de outro lado, há um crescente reconhecimento da importância de outros processos de aprendizagem não estritamente escolares em que o jovem e adulto pode ampliar e partilhar conhecimentos e saberes acumulados ao longo da vida em qualquer idade. A EJA precisa ser entendida como um processo que procura desenvolver o potencial e a autonomia de cada jovem e adulto por meio de processos mais formais de escolarização e por meio de outras formas igualmente válidas de aprendizagem ao longo da vida.

JP – O aprendizado de jovens, adultos e crianças ocorre da mesma maneira ou há diferenças?

TI - Talvez a primeira e óbvia diferença que há de apontar é que o jovem ou adulto não pode ser tratado simplesmente como uma criança crescida. O que queremos dizer com isso? Em geral, as crianças, pela sua condição de criança, têm pouca experiência de vida e pouco tempo em que acumular conhecimento e aprendizagem. O adulto ao retornar ao processo de escolarização e aprendizagem sistematizada traz consigo uma bagagem de experiência e de conhecimentos acumulados nos seus distintos campos de atuação e interação: no campo de trabalho, na família, na convivência social, na comunidade, na vida religiosa, na sua vida associativa e sindical e nas lutas cotidianas para sobreviver. Assim, na EJA se tem frisado a importância em termos metodológicos de partir do que o adulto conhece e sabe e não do que não sabe. O jovem e adulto pode ter mais dificuldade inicialmente em aprender novos conhecimentos e processos porque está afastado a tempo de processos mais formais, sistemáticos e organizados de aprendizagem, mas não existe nenhum impedimento neurológico para que continue o seu processo de aprendizagem. Aprender também é uma disciplina que precisa ser aprendida ou re-aprendida e que custa trabalho. Muitos adultos reclamam no começo que o estudo faz a cabeça doer. É igual como quando re-tomamos a atividade física depois de um período sem nos exercitar, o corpo dói!

Assim, precisamos desenvolver métodos de ensino-aprendizagem que levem em consideração a condição de adulto do educando, que lhe tratem como adulto e que ajudem a fortalecer a sua auto-estima, a sua auto-imagem frequentemente fragilizada pela sua condição social. Ao partir do que o educando sabe, abrimos a possibilidade de uma nova construção baseada em diálogo e uma relação mais horizontal entre o educador e educando, reconhecendo que em várias áreas de conhecimento o próprio educando possui mais acúmulo que o seu educador.

JP – Os conteúdos curriculares de EJA são os mesmos desenvolvidos na educação básica? Esses conteúdos são iguais em todo o Brasil?

TI - Como modalidade de ensino fundamental e ensino médio, as Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA aprovadas em 2000 estendem para a EJA as Diretrizes Curriculares Nacionais já estabelecidas para o ensino fundamental e médio dois anos antes. Porém, ao mesmo tempo, frisam que dentro da identidade própria da EJA, é fundamental levar em consideração as situações, os perfis e as faixas etárias dos estudantes, se pautando “pelos princípios de equidade, diferença e proporcionalidade na apropriação e contextualização das diretrizes curriculares nacionais e na proposição de uma modelo pedagógico próprio”. O que é que isso significa? Significa, de um lado que as diretrizes nacionais são fundamentais por estabelecerem a garantia de uma base comum nacional inclusive para o efeito da aferição de resultados e do reconhecimento de certificados de conclusão. Há sem dúvida a necessidade de parâmetros comuns. De outro lado, significa que considerando a especificidade da EJA (situações, perfis, faixas etárias) essas mesmas diretrizes não podem ser aplicadas de uma forma inflexível e homogênea. É necessário oferecer respostas diferenciadas para a diversidade que os contextos regionais, culturais e sócio-econômicos exigem. Não há tão pouco como tratar as necessidades de aprendizagem dos distintos grupos e faixas etárias que procuram a EJA, seja no nível fundamental ou médio, de uma maneira igual. É evidente que há grandes diferenças entre o contexto cultural dos estados do sul e os estados do norte, por exemplo, ou entre as necessidades de aprendizagem das populações vivendo no campo e as vivendo nas grandes aglomerações urbanas ou entre as das comunidades quilombolas e as das periferias urbanas. Igualmente, é essencial que a modalidade de EJA, seja fundamental ou médio, reconheça os diferentes tempos e espaços dos seus educandos. Na EJA, precisamos ter clareza sobre quem são os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem e quais os seus interesses, necessidades e demandas em termos de tempos e formatos de estudo. Em outras palavras, a EJA precisa de um projeto pedagógico específico pensado a partir da realidade do educando que procura a garantia do seu direito à educação.

Assim, os princípios da contextualização e do reconhecimento de identidades pessoais e das diversidades coletivas constituem-se em diretrizes nacionais dos conteúdos curriculares. A EJA é um espaço importante para a reconstrução das experiências da vida ativa e para ressignificar os conhecimentos adquiridos na ‘escola da vida’ e articulá-los com os saberes aprendidos na escola. Representa uma forma de validar e reconhecer as aprendizagens não-escolares e, ao mesmo tempo, articular escola e vida.

JP – O que é significativo e interessante que os alunos de EJA aprendam?

TI - Parece-me que quem tem que decidir o que é significativo e interessante para os alunos de EJA são os próprios sujeitos do processo de aprendizagem. Nesse sentido, diria que é importante que os conteúdos do processo de aprendizagem sejam socialmente relevantes. Isto é, que contribuem para o jovem ou adulto entender melhor, e criticamente, o contexto em que vive, para melhorar a qualidade da sua vida e a da sua sociedade, para desenvolver o seu potencial como indivíduo (a sua vocação ontológica de ser mais) e para fortalecer a sua autoconfiança e auto-estima. Muitos jovens abandonam a escola regular por não ver nenhuma relevância no que são obrigados a aprender na escola para a sua vida fora da escola. Na EJA (e na escola), a questão da relevância é fundamental.

Do ponto de vista do educador e cidadão, diria também que é fundamental o educando jovem e adulto aprender a ler com prazer na escola. A leitura é a base do processo de aprendizagem ao longo da vida e da autonomia pedagógica. Não há como construir uma sociedade mais democrática, participativa e justa sem cidadãos leitores e críticos. Uma política pública de acesso ao livro e a leitura é parte integrante de uma política de educação de jovens e adultos.

Em terceiro lugar, volto para aquela referência que fiz antes aos quatro pilares de aprendizagem apresentados no relatório da Comissão Internacional do Século XXI (Relatório Delors). A Comissão aponta como fundamental para a EJA o aprender a conhecer, a fazer, a ser e a viver juntos. O aprender a conhecer enfatiza a necessidade de a educação ensinar não tanto um vasto leque de conhecimentos senão “o domínio dos próprios instrumentos do conhecimento”. O aprender a fazer está ligado à questão da formação profissional e como aplicar criticamente os conhecimentos ao mundo de trabalho. O aprender a ser se refere ao desenvolvimento, autônomo e crítico, da pessoa na sua plenitude. Talvez o pilar que mais chama a atenção no dia de hoje é o aprender a viver juntos ou a conviver. Podemos articular isso com o que a Unesco tem chamado de uma cultura da paz. É função de a educação desenvolver a compreensão do outro e a percepção das interdependências, buscarem compreender as diferenças e valorizar a diversidade. A paz é um processo e não um estado que tem que se criado, recriado e alimentado continuamente por meio da compreensão informada.

Seria interessante perguntar aos seus estudantes o que querem da escola.

JP – Quais os principais aspectos que os professores de EJA devem observar para a obtenção de melhores resultados com seus alunos?

TI - Espero ter convencido o leitor que o campo da educação de jovens e adultos é um campo que ganha a sua identidade própria da natureza e características dos sujeitos que freqüentam ou são alunos potenciais da EJA. Por isso exige metodologias, currículos, material didático, tempos e espaços, formas de avaliação e, sobretudo, formação inicial e continuada específicas para os seus profissionais. Na maioria dos casos quem trabalha no campo da EJA recebe no máximo uma formação superficial e curta para trabalhar com jovens e adultos. São poucas as universidades que oferecem uma habilitação específica para a EJA. Às vezes, há uma disciplina que trata mais dos aspectos históricos e políticos da EJA do que das questões teórico-metodológicas. O professor ou educador de EJA requer como qualquer outro profissional, uma formação inicial adequada seguida por formação continuada. Mas também precisa de garantia de emprego no campo em que foi formado. Por isso, há de ter concursos públicos nos municípios e estados especificamente para o campo da EJA.

Da minha experiência no campo da EJA, eu destacaria três aspectos fundamentais para que o professor consiga facilitar a aprendizagem dos seus alunos adultos. Em primeiro lugar (embora não haja para mim hierarquia entre os três aspectos), o professor tem que ter competência técnica. Em outras palavras, precisa ter um bom domínio do conteúdo que está ensinando. O educando descobre muito rapidamente quando o educador está blefando ou inseguro. Segundo, o educador precisa ter competência pedagógica – saber lidar com os jovens e adultos nas suas salas. É necessário conhecer os alunos e suas experiências, descobrir o que sabem e o que querem saber, partir do que sabem e estabelecer um diálogo democrático e produtivo com os alunos. Em terceiro lugar, o educador de adultos precisa desenvolver o que chamo de sensibilidade pedagógica - compreender a importância da escuta pedagógica, tratar o adulto como igual, como co-participe no processo de aprendizagem.

JP – Qual é a situação da EJA no mundo, atualmente? Quais os países que se destacam nesse tipo de ensino?

TI - Em dezembro de 2009, a Unesco juntamente com o Governo Brasileiro organizou a Sexta Conferência Internacional de Educação de Adultos – VI Confintea, em Belém do Pará. Durante a Conferência, a Unesco lançou o primeiro Relatório Global de Aprendizagem e Educação de Adultos (GRALE da sigla em inglês) que apresenta um estado de arte mundial da EJA. Para os interessados recomendo a leitura desse relatório que pode ser baixado do site: http://www.unesco.org/pt/brasilia

O relatório revela, de um lado, a falta ou a precariedade de dados sobre a EJA. O dado quantitativo mais citado é o número de pessoas que ainda não sabem ler e escrever mundialmente, 774 milhões (34 dos quais na América Latina). De outro se identifica uma dualidade conceitual relacionada com a EJA: para os países do sul a EJA ainda é fortemente associada com estratégias, programas e políticas de alfabetização e educação básica dentro de uma abordagem escolar, reparadora e compensatória. Para os países do hemisfério norte embora haja uma base conceitual mais ampla voltada para a aprendizagem ao longo da vida, há também uma preocupação primordial com relação à formação profissional – crescimento econômico: o investimento em recursos humanos para garantir a crescente competitividade da economia européia.

Entre os países emergentes a África do Sul, a Coréia do Sul, Tailândia e China são citados como países que têm investido no campo da EJA na perspectiva da aprendizagem ao longo da vida. Na América Latina, o Brasil tem desempenhado um papel de destaque embora os desafios permaneçam enormes. Na Europa, os países nórdicos como a Suécia, a Noruega e a Dinamarca possuem uma tradição forte de valorização da educação de adultos.

Talvez o que mais preocupa no momento são as consequências dos cortes resultando da crise financeira que atingiu o mundo, e especialmente os países mais industrializados, em 2009. Quando há uma necessidade de reduzir gastos públicos a EJA termina sendo um alvo clássico. Esperamos que isso não seja o caso num campo em que os investimentos (e não gastos) já são insuficientes para o tamanho do desafio.

Fonte: Jornal do Professor