Skip to Content

A história do Paranoá - perspectiva do Movimento Popular


Fonte: Acervo do CEDEP - Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá

O Brasil, Brasília e o Paranoá

 

A história do Paranoá e a Alfabetização de jovens e adultos.*

 

 

Década de 1960. Brasília capital da esperança e do desenvolvimento nacional. Governo JK (Juscelino Kubitscheck: 50 anos em 5). Consolidação do capitalismo industrial, advindo com a revolução de Getúlio Vargas em 1930. A Economia agro-exportadora perde de vez sua hegemonia. Sonho e Utopia de um Brasil moderno e desenvolvido. Milhares de brasileiros acorrem à capital da esperança. Juscelino Kubitscheck, seu grande inspirador, assim se pronuncia quando do discurso de sua inauguração a 21/04/1960: "Deste Planalto central, desta solidão que em breve se transformará em centro das grandes decisões nacionais, lanço o olhar sobre o meu país e antevejo esta alvorada com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino."

Moradia, pão, educação, saúde e trabalho. Muitos dos migrantes que construíram a capital: prédios e inclusive moradias, não têm acesso a estas. Ficam ao relento, sem ter onde morar. Esses "candangos" (como são chamados os operários construtores de Brasília) ficam à margem da vida social, cultural e econômica da cidade. Aliás, como é próprio da lógica e da natureza de todos os capitalismos (intrinsecamente produtoras de exclusão e desigualdade social, econômica e cultural) e no caso brasiliense e brasileiro não é diferente.

Esta lógica não é diferente do que ocorre com os operários migrantes construtores da barragem do Lago Paranoá. Terminam a construção da barragem e não têm onde morar.

Esses mesmos migrantes, então, ocupam casas desocupadas, antes utilizadas por engenheiros que dirigem a obra de construção da barragem. Tem-se início a ocupação. Longe do Plano Piloto.

Estes moradores iniciais ( na década de 60) levam suas vidas de uma forma quase despercebida. Mas, o êxodo brasileiro se intensifica, na direção campo-cidade, particularmente, nas décadas 70 e 80. O aumento da população urbana e das ocupações em todo o Brasil atinge também Brasília, e assim chegam novos moradores ao Paranoá.

A população aumenta. E esse aumento da população assusta os ocupantes iniciais, e o Estado . O aumento da população gera uma série de desafios, com destaque para o provimento de bens de serviço (água, luz, moradia, iluminação, escola, etc.).

Assim posto, o Estado: sociedade política, rotula a ocupação dos moradores de "invasão". Com isso, tenta desqualificá-la, caracterizando-a, como indevida e ilegal. Por isso mesmo, não tem interesse em prover os bens de serviço, porque corresponde a uma legitimação da invasão. "Invasão", segundo leitura do governo. "Ocupação", na ótica dos migrantes que se tornam moradores da vila Paranoá-DF. E daí a conseqüência da violência sob formas diversas, uma delas, a da derrubada de barracos construídos.

Nesse mesmo tempo, Um grupo de jovens começa a participar da liturgia da missa, a reunir, conversar, tocar, aprender as músicas da igreja. Reuniões que aconteciam todo sábado. O grupo com o tempo foi aumentando, mesmo porque, não havia muita coisa para se fazer no Paranoá, a não ser buscar água na bica e ficar vigiando a Terracap. Não havia nem chafariz. As pessoas tinham que ficar indo de lá para cá, enfrentando fila, e empurrando carrrinhos com latas de água. Era uma barulheira de carrinhos prá baixo e prá cima.

Era uma brigar pela água, brigar para ter onde morar, brigar para fazer um cômodo para dormir. Além disso, existia o conflito entre moradores novos e antigos (que haviam construído a barragem do Paranoá) e moravam no acampamento, antes utilizado por técnicos e engenheiros da obra e que já dispunham de certos bens de serviço: caso da água que saia de uma mina e ia até suas casas. Devido à grande procura de água, estes moradores ficaram com medo de não ter mais água. Mal sabiam eles, que o aumento da população seria a chave da fixação do Paranoá.

Esse luta toda, aumenta o trabalho dos jovens dentro e fora da igreja. Diante da situação que ocorria no Paranoá, os jovens organizam o Grupo Pró-Moradia , por entenderem que não é suficiente ficar só dentro da igreja, cantando e rezando. É necessário também brigar pela água, luz, fixação e outras coisas. Este é o primeiro grupo com cunho mais político, no sentido de buscar melhores condições de vida e organização da comunidade. O Grupo discutia religião e vida.

As precarissimas condições de vida dos moradores, a inexistência de condições materiais mínimas para a sobrevivência, e uma consciência de iniciativa política que tem sua marca pela passagem dos jovens pela igreja São Geraldo do Paranoá e as discussões que desenvolviam, particularmente, fundadas nas conclusões do II Celam: Conselho Episcopal Latino Americano, realizado em 1979 em Puebla, no México, que como desdobramento do concílio Vaticano II, decide por uma atuação da igreja católica, voltada preferencialmente pelos pobres, contribuíu para a iniciativa desses jovens católicos à mobilização e organização dos moradores, com a denominação inicial de Grupo Pró-Moradia do Paranoá, talvez, por ser, naquele momento, o problema mais premente.

Já existia uma Associação de Moradores, mas, que estava mais voltada para interesses pessoais do que coletivos, o que gerava uma insatisfação na comunidade. Esses insatisfeitos se juntam ao Grupo Pró Moradia.

Pessoas religiosas ou não foram se chegando ao Grupo Pró-Moradia e então começamos a discutir as necessidades de ir para a rua, conhecer mais as pessoas, buscar a melhoria daquele povo, melhoria nossa com todo mundo junto.

O grupo começou a marcar reuniões com o povo, com o apoio do padre José Galli que construiu um salão ao lado da igreja, onde os jovens pudessem se reunir com a comunidade em reuniões todo sábado. Rezar, discutir os problemas e tirar propostas, porque o povo não queria mais só rezar.

E aí aparece, a necessidade do chafariz, da água. Procuram então a Associação de Moradores, que tinha a prática de pegar abaixo-assinado, levar aos gabinetes dos governadores, sentar com eles, tomar sua "aguinha", entregar o abaixo assinado e vir embora. Avaliou - se esta prática e viu que não estava dando certo. então passou -se, a fazer diferente: o grupo marcava as reuniões com as autoridades responsáveis pela água, luz, etc. e levávam os moradores junto. Chegando lá, todo mundo tinha que sentar, colocar o que estava pensando e sentindo.

A pressão e a reivindicação conjunta: Grupo-Pró Moradia e moradores que o companhavam, não era uma ação espontaneísta, sem planejamento. O que fazer e o como fazer, eram discutidos previamente nas reuniões na igreja

E o Paranoá segue inchando e crescendo [com a crise econômica vivida pelo país na década de 80]. O que acirrou ainda mais a briga e a tensão com a Terracap. Quem chegava construía seus barracos de noite e quando era dia, a Terracap chegava e baixava o pau. Derrubava. Quebrava tudo. A situação gerou uma repercussão muito forte nas pessoas que começaram a perceber que aquilo não estava certo e passaram a se organizar. E nós, Grupo Pró-Moradia também percebemos que se não tivésse um espaço institucional, um espaço mais organizado, não ía conseguir levar avante as propostas e lutas.

Assim o grupo resolve entrar para a Associação de Moradores, como o presidente já estava muito tempo no cargo e a morosidade era muito grande, chamamos às eleições e apresentamos uma chapa constituída pelos jovens do Tuca 2: Delcione (Presidente), Lourdes (Vice), João do Violão (Secretário e Diretor de Cultura) Juarez (tesoureiro), Ricardo (Diretor Político) e ainda a participação de Bosco (Diretor de Educação), Fátima Frazão, Eliane e outros ( A Chapa de jovens)

O Trabalho da Associação de Moradores muda de orientação. Intensifica a participação da comunidade e aumentam as dificuldades com o governo. A Associação de Moradores passa por profunda reformulação. Paranoá foi todo rastreado e dividido em setores. Os jovens egressos do Pró-Moradia avançam em sua capacidade de mobilização e organização. Grandes concentrações. Grandes reuniões de massa.

Ao mesmo tempo, que aumenta a pressão do governo, passamos a contar com o apoio do Projeto Rondon e de alguns professores da Universidade de Brasília (UNB), que aqui vinham desenvolver trabalhos na área da saúde, de artes, entre outras. Reorganizamos a Associação de Moradores, criando Comissões: Água, Educação, Cultura, Imprensa. Fizemos o primeiro jornal, de duas páginas, através do qual, informávamos à população de todas as discussões, acertos e desacertos com o governo.

E nessa caminhada de luta, sofrimento, alegria, aparece uma nova luta, dentre, as várias lutas: a alfabetização de jovens e adultos.

Quando o Mobral já estava acabando no Brasil, o governo resolveu implantar umas turmas de alfabetização de adultos no Paranoá, que duraram de 4 a 6 meses no máximo. O Mobral não tinha estrutura, mas o esforço de alguns de seus monitores, possibilitaram que algumas pessoas que não sabiam escrever nada, viessem a aprender a escrever o próprio nome. Essas pessoas se sentiram bem e queriam continuar a estudar para melhorar a situação de vida. O Mobral, então é extinto pelo governo. Diante desse fato, essas pessoas procuram a associação de moradores e solicitam a volta do Mobral, mas ele estava morrendo no país inteiro. Diante da insistencia e de falas do tipo: "Nós queremos continuar a aprender a ler e escrever."

A Comissão de Educação então se reúne, elabora uma proposta e a discute com a Fundação Educacional do Distrito Federal (FEDF). Enquanto isso, o pe. José Galli, vigário do Paranoá, sede um espaço na igreja onde é montada uma turma de alfabetização, dando oportunidade a essas pessoas de continuarem o aprendizado da leitura e da escrita. Esse na verdade, constitui o primeiro grupo de alfabetização de jovens e adultos do Paranoá, por iniciativa da própria comunidade.

Como abrir turmas em um lugar, em que a política do governo é de remover os moradores?

Daí, as dificuldades de negociação e o não avanço dos acertos com a FEDF. Os jovens da Associação não deixam de negociar, mas, também não ficam imobilizados.

É importante destacar como que a luta pela alfabetização de jovens e adultos não nasce isolada e desvinculada do conjunto das lutas dos moradores do Paranoá. Ela é tão imbricada às outras lutas, que na própria narrativa de Lourdes ela aparece conjugada com as outras frentes de luta. Isso, mostra que em sua gênese a alfabetização de jovens e adultos, está misturada ao conjunto das necessidades postas pelos moradores do Paranoá, e como tal, responde à uma lógica dos interesses que estes moradores, organizados em sua Associação tinham em vista.

Com a resistência da diretora do ensino supletivo, chega-se à decisão, que deveria se buscar outro caminho. Nessa busca, fica-se sabendo de uma experiência comunitária de alfabetização de jovens e adultos no Gama22. Fica-se também sabendo que a coordenadora é a Prof. Marialice Pitaguary da Faculdade de Educação da UNB, através da Prof. Glória da Faculdade de Ciências da Saúde e algumas assistentes sociais que trabalhavam no Paranoá,

Através da Comissão de Educação convidamos a Prof. Marialice para uma reunião na sede da Associação de Moradores. Era a primeira vez que a professora ia ao Paranoá. Ao chegar, deparou-se com aquele horror de gente querendo educação...

Marialice topou a parada , o desafio e veio com seus alunos: Inicialmente, Norma e Cirnei. Esse grupo de alunos da UNB se apaixonou pelo Paranoá, começaram a vir aqui, durante a semana, final de semana. Marialice fez uma esquema de treinamento de 7 monitores para alfabetizar junto com o pessoal da UNB. Esse, o começo da alfabetização de jovens e adultos, com o apoio da UNB. Essa iniciativa não significou a desmobilização em negociar com FEDF, mas não se podíamos ficar parados, esperando o governo fazer o que não queria fazer, embora, fosse sua responsabilidade.

Ao discutir e observar com e na escola pública como se fazia a alfabetização institucional, a gente percebia de que precisávamos não só de ensinar a ler e escrever. Mas, necessitávamos também discutir com a comunidade escolar. O objetivo era: ensinar a ler e escrever e também discutir. Ou seja, a alfabetização tinha que continuar sendo espaço de discussão e de encaminhamento dos problemas da comunidade, coisa que não acontecia no âmbito da alfabetização institucional.

Nesse rumo Continuou-se o trabalho de alfabetização de jovens e adultos com o apoio da UNB. E nessa continuidade, ocorreu algo maravilhoso, marcante e que envolveu toda a comunidade: o Censo do Paranoá.

Esse primeiro censo foi muito importante. Porque nem nós, nem a FEDF, nem a UNB tínha claro o número de analfabetos numa população de quase 35 mil pessoas, que o Paranoá já tinha. E mais de uma vez, os governantes indagaram: para quê alfabetização de jovens e adultos no Paranoá? Quantos analfabetos lá tem? E não se tinha a resposta.

A realização do censo aconteceu em conjunto com a UNB. Foi um censo muito discutido e feito de casa em casa, não foi por amostragem. Foi muito interessante, porque não ficamos sabendo só quantos analfabetos tínhamos, mas, sobretudo, aprofundamos nosso conhecimento dos problemas da própria comunidade: quantos desempregados, tipo de profissionais que tínhamos, o que a comunidade pensava, a origem das pessoas, onde trabalhavam, quantos moravam em cada casa (barraco). Muitas instituições, como a Igreja, a LBA e a própria FEDF utilizaram esses dados em seus trabalhos aqui. A própria Secretaria de Saúde utilizou nossos dados para implementar ações de saúde aqui.. Esse censo em muito veio fortalecer a proposta de alfabetização, e a aproximação com a comunidade e outras instituições. Crescia-se na alfabetização, utilizando os espaços comunitários a medida que se dava continuidade nos outros trabalhos(o da luta pela fixação e dos equipamentos comunitários para o Paranoá). Nesse tempo, aparece todo um esforço por parte do governo para que esse grupo fosse destituído da Associação dos Moradores.

Luta pela alfabetização, fixação e aquisição de equipamentos comunitários para o Paranoá: água, posto policial, posto de saúde, entre outros. Sentindo essa luta e toda essa força, o governo começa uma grande investida para tirar todo mundo daqui e remover para Samambaia. Nessa investida, um dos locais atacados foi a Associação de Moradores. O governo queria tirar da direção da Associação o Grupo de Jovens da Igreja Católica,

E o governo investiu pesado, botaram pessoas atrás da gente, infiltraram agentes na Associação de Moradores, fizeram tudo que vocês possam imaginar, fechavam a Associação, quando estava acontecendo reunião, para desmoralizar a população. espalharam boatos dizendo que o pessoal da associação era terrorista. Eram coisas fora da realidade. Eles inventavam o que podiam para amedrontar e colocar a comunidade contra a associação. E é neste momento que o Gilson Araújo ganha espaço no Paranoá e organiza a Prefeitura Comunitária.

Quando O Gilson viu que o grupo da Associação era forte, organizado, mobilizado, ele começa a jogar com a desmobilização do grupo e forma a Prefeitura. (segundo Lourdes. Ele joga com os interesses pessoais de algumas pessoas e consegue engajá-las no trabalho da Prefeitura, dividindo o grupo da Associação. Ele com um grupo de 7 a 10 pessoas funda a Prefeitura) que começa a fazer um trabalho paralelo, de desmoralização e enfraquecimento da Associação de Moradores e de jogar pessoas e grupos uns contra os outros. E é nesse momento também que aconteceu um dos acontecimentos de maior repercussão da luta pela comunidade. A mais espetacular e grande expansão do Paranoá, antes de sua fixação (regularização): O Barracaço.


Ocorre, então, o Barracaço. A população mobilizada em conjunto com a associação de moradores de uma noite para o dia constroí 1.500 barracos de madeira. Isso, em 1988. "A Polícia veio com tudo, para derrubar tudo e a gente não deixou por menos, não! A gente construiu barricadas também. Nós não estávamos tão desmobilizados assim. Junto com os moradores que pagavam aluguel (inquilinos), já estava decidido que íamos para o enfrentamento. Os barracos começaram a ser construídos e a polícia e o aparato de guerra veio pelo Lago Norte. Cercaram todo o Paranoá." (Lurdes)

O governo passa a jogar mais pesado. E através da Prefeitura Comunitária tenta convencer os moradores a saírem do Paranoá, ou seja, serem removidos para outro lugar. A Associação era contra a saída, pois, defendia a fixação. Haviam duas linguagens em luta, uma do Gilson, do Figueiredo, do pessoal da Prefeitura Comunitária, a favor da posição do governo, dizendo e tentando convencer os moradores, que não poderíamos ficar aqui. Diziam que o governo não tinha condições técnicas de nos deixar aqui, porque não colocar água, esgoto, entre outras coisas. Outra linguagem, era a nossa da Associação de Moradores, tentando consolidar e convencer outros moradores que a fixação era um direito de todos. É o momento também que passamos a contar com outros departamentos da Universidade de Brasília (UNB). Veio o pessoal da arquitetura, que fez um projeto de fixação para o Paranoá, mostrando que era viável, inclusive utilizando os mesmos espaços em que estávamos. Veio o pessoal da engenharia, da arquitetura, e da geologia (Professores Ricardo26, Cláudio27 e outros), que fizeram escavações e mostraram tecnicamente que o governo podia colocar, água, esgoto, se assim o quisesse. Essas argumentações que o grupo tinha, fundamentadas pelo pessoal da UNB, aumentava a chateação do governo.

Associação de Moradores e os moradores contaram no seu enfrentamento com o governo e agora, com moradores organizados em torno da Prefeitura Comunitária, que se colocaram a favor da posição do governo.

No confronto governo/prefeitura comunitária e Associação de Moradores, muitos moradores se convencem de que o governo e a Prefeitura Comunitária estavam certos e o melhor para a comunidade do Paranoá era ser transferida. Gilson de Araújo candidata-se a presidente da Associação de Moradores e ganha a eleição. O argumento dele era de que com o Barracaço (o aumento de 1.500 barracos de uma noite para o dia), o governo mandou um aparato policial para o Paranoá, com tanques de guerra, polícia montada e cachorros, em decorrência de sermos um bando de terroristas, de baderneiros, de petistas que estava contra o governo, que só queria trazer para cá polícia e prejudicar a comunidade.

Dizia também, que para conseguir a fixação, a população tinha que ser mais passiva, mais negociadora, tinha que discutir melhor com o governo, para conseguir as coisas. "Diziam que éramos muito radicais. E tudo isso, confundia e confundiu a cabeça da população. De qualquer maneira, conseguimos levar o Projeto de Fixação para discutir com o governo, na época, o governador José Aparecido de Oliveira. Nós já estávamos no final de nossa gestão e o Aparecido também. Então, depois de muita conversa, ele assinou o decreto de fixação do Paranoá" (Lurdes)

"Eu atribuo à mobilização e organização da comunidade e a pressão que esta exercia, e o apoio que também recebemos da Igreja, UNB, CNBB, OAB, Comissão de Direitos Humanos, de Justiça e Paz. Foram muitas pressões. Além disso, nossa mobilização e as conseqüências do barracaço mostraram a toda Brasília, ao Brasil e ao Mundo, que a capital do país, não era só o Plano Piloto dos ricos. O Paranoá saiu nos jornais e rádios internacionais. E depois, o fato de termos construído 1.500 barracos em um dia, incomodou e assustou muita gente. Podem ter pensado: se esse pessoal constrói 1.500 em um dia, eles podem construir muito mais, e vão tomar tudo." (Lurdes)

Na praça [a do Roxo], eram feitos os showmícios, nos quais eram passados os recados ao povo. De Aparecido, o Distrito Federal passa a ser governado pelo Roriz. E tanto este, como a nova gestão da Associação de Moradores é que levam o mérito da assinatura do decreto. E muda inclusive o projeto de fixação, que Aparecido tinha assinado em cima do projeto feito pela Universidade de Brasília, que colocava o Paranoá a partir da cota mil, bem junto à Barragem e mais próximo à rodovia, onde já morávamos, lutávamos e tínhamos construído nossos laços de vizinhança. O Roriz muda tudo: do lugar ao tamanho do lote e ao critério de distribuir lote. E Gilson Araújo vai tomar cafezinho com ele e diz que tem toda a mobilização da comunidade. Ele se apropria de um mérito e de um trabalho que não tem nada a ver com essa atitude.

Os dois mudam e negam tudo que havia sido acertado antes e democraticamente discutido com todo o povo. Havia uma área com plantação de pinheiros. Ele manda derrubar, passar máquina e a jogar o pessoal todinho para lá, na base da pressão. Era assim: entregava o lote (que no projeto de Aparecido era no mínimo de 250 ms2) e reduz para 128 ms2, um cubículo. De 35 mil, o Paranoá pula para cerca de 60.000 habitantes. Não usou critério algum. Chegava gente de todo lugar. Gente que recebeu 2 a 3 lotes. Gente rica do Lago Sul e Lago Norte, que recebeu lote em nome de suas empregadas. E por aí, foi...o arrancamento do Paranoá. Porque não foi mudança. Foi uma violência. Uma negação de toda a história. Eram trinta anos de luta!

 "Olha, se a senhora não pegar seu lote lá em cima, a senhora vai ficar sem lote nenhum aqui e vai ter que voltar para Minas Gerais. Sua filha está com essa história de ganhar lote na Quadra 2 e ninguém vai ganhar". Com essa fala podemos ver que eram realmente os terroristas.

 Nesse meio tempo, a Associação de Moradores do Paranoá com sua nova direção, se nega a continuar com os trabalhos de alfabetização com o argumento de que isso era de competência da Fundação Educacional. Assim as mesmas pessoas, antes mobilizadas na associação de moradores veem a neceesidade da continuidade da organização da população do Paranoá e a realização dos trabalhos comunitarios e cria o CEDEP – Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá, onde conseguem organizar trabalhos culturais e continuar com a alfabetização de jovens e adultos juntamente com a Faculdade de Educação (FE) da UNB, na perspectiva de dar continuidade com a visão de uma que alfabetização de jovens e adultos não restrita e estrita ao acesso e transmissão à/da norma padrão. Dar continuidade a uma alfabetização, que contribua ao fortalecimento da mobilização, organização e luta dos moradores por maiores e melhores condições de existência. Como disse a Lourdes, ensinar a ler, escrever, calcular, discutindo e encaminhando a solução dos problemas enfrentados pelos moradores do Paranoá.

Esse desafio foi aceito pela FE na pessoa da professora Marialice Pitaguary, que com alunos de pedagogia e outros cursos, começa a delinear os contornos de uma proposta de alfabetização, que tem como base teórica inicial, sobretudo, os estudos de Paulo Freire e Emília Ferreiro. Esta, se faz presente, também através dos estudos trabalhos da Prof. Ester Pilar Grossi e seu GEENPA(Grupo de Estudos Sobre Educação e Metodologia de Pesquisa-Ação), com crianças da periferia de Porto Alegre. A professora Marialice Pitaguary permanece de 1986 a 1989, quando por razões de saúde retorna à sua cidade de origem (Ouro Fino-MG.).

E é o momento em que o professor Renato Hilário assuma a coordenação do Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos da Vila Paranoá na UnB, onde permanecesse até hoje.

 

* Retirado da tese de doutorado de Reis, Renato Hilário dos. A constituição do sujeito político, epistemológico e amoroso na alfabetização de jovens e adultos.Campinas, SP: [s.n.], 2000. CAPÍTULO 1: Paranoá: origem, história e alfabetização de jovens e adultos. ( a construção desse capitulo da tese se baseou na relato de Maria de Lourdes Pereira dos Santos, moradora do Paranoá desde os 13 anos.)