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Utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação na Alfabetização de Jovens e Adultos - ANGELIM, M.L.P.

Autora: Profª. Maria Luiza Pereira Angelim
 

Os compromissos relativos à alfabetização e à educação de PESSOAS jovens e adultas firmados pelo Ministério da Educação, em nome do governo brasileiro, em encontros internacionais, desde a Conferência Educação Para Todos, em Jomtien/Tailândia-1990, seguido da V CONFITEA, em Hamburgo/Alemanha-1997, da Cúpula Mundial de Educação, em Dakar/Senegal-2000 e, mais recentemente, da ONU-Década de Alfabetização-2003, incluem a necessidade das tecnologias de informação e comunicação para o esforço de alcançar as metas da Educação Para Todos.

Para nossa reflexão sobre o tema "Utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação na Alfabetização de Jovens e Adultos", neste Seminário Internacional Ibero-americano, trago à lembrança a contribuição do geógrafo brasileiro Milton Santos quando afirmou que a "tensão entre o universal e o internacional se encontra na raiz de nossa necessidade em legitimar a cultura brasileira". Explicitando, dizia ele:

"A questão central que nos ocorre, sobre a nossa interpretação de nós próprios, nesses chamados 500 anos de Brasil, é a seguinte: é possível opor uma história do Brasil a uma história européia do Brasil, um pensamento brasileiro em lugar de um pensamento europeu ou norte-americano do Brasil, ainda que conduzido aqui por bravos "brazilianists" brasileiros? Não se trata de inventar de novo a roda, mas de dizer como a fazemos funcionar em nosso canto do mundo; reconhecê-lo será um enriquecimento para o mundo da roda e um passo a mais no conhecimento de nós mesmos. Ser internacional não é ser universal e para ser universal não é necessário situar-se nos centros do mundo. Inclusive pode-se ser universal ficando confinado à sua própria língua, isto é, sem ser traduzido. Não se trata de dar as costas à realidade do mundo, mas de pensá-la a partir do que somos, enriquecendo-a universalmente com as nossa idéias; e aceitando ser, desse modo, submetidos a uma crítica universalista e não propriamente européia ou norte-americana".(Santos,1999).

É, deste ponto de vista, que entendo nossa contribuição, como afirmação da nossa cultura brasileira no próprio modo singular de alfabetizar PESSOAS jovens e adultas que na diversidade convivem, hoje, no mundo não só letrado, mas multimídia e virtual, marcado fortemente pela imagem. Trata-se de um modo de alfabetizar PESSOAS jovens, adultas, incluo idosas, preservando nossas RAÍZES culturais geradas nas tradições milenares dos povos-nações indígenas, portugueses e afrodescendentes negros, que, aqui-agora, constituem valioso patrimônio humano do saber de experiência feito nas suas estratégias de sobrevivência nos trópicos, conservado até hoje, em grande parte, na oralidade entre gerações ou registrado em audio e audiovisual por terceiros. Trata-se, sobretudo, do conhecimento de nossa riquíssima e cobiçada biodiversidade e do nosso exercício humano da transcendência, neste chão planetário. Trata-se, enfim, de escutar, ver, tocar, sentir, dialogar, re-ler, re-escrever e re-criar a história brasileira em cada lugar, em particular, dos indígenas, dos quilombolas, do herdeiros do culto do Divino dos portugueses de Abrantes com a significativa e imprescindível contribuição de PESSOAS jovens, adultas e idosas alfabetizandas reconhecidas como SUJEITOS de transformação da nossa sociedade brasileira atual.

Para isto contribuem alguns pressupostos:

  1. A compreensão do sistema educacional público com gestão democrática como parte estruturante estratégica da sociedade brasileira orientada para o desenvolvimento humano, implicando no desenvolvimento sustentável e na sua auto-determinação como povo;

  2. O reconhecimento da emergência de novos e ancestrais paradigmas sobre as visões de mundo e de ciência, apoiados na revolução científica, em particular, no campo da física e da biologia, afirmando a subjetividade singular e o compromisso ético, a complementaridade entre diferentes formas de conhecimento e o exercício transdisciplinar na busca da unidade na totalidade do conhecimento humano (UNESCO-Declaração de Veneza,1986 in D’Ambrosio,1994);

  3. A superação da sociedade da informação, da sociedade do conhecimento pela sociedade educativa (conceito inspirador do Art.1º da LDB 9394/96), desafiando-se na construção da era da consciência (D’Ambrosio,1997) e da inteligência coletiva/cosmopédia, neste período noolítico da história humana (Lévy,1998);

  4. A compreensão da educação como um processo ao longo da vida, superando a dicotomia de educação inicial e continuada, conforme a definição proposta para a educação no século XXI com seus quatro pilares: aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos ou com os outros, a ser (UNESCO-Delors ,1996).

Tais pressupostos permitem indicar como base referencial, o que definimos como ser aprendiz orgânico cósmico (Angelim,2001), ou seja, uma espécie humana-sujeito, naturalmente aprendiz, no exercício de interação com o outro ou os outros no ambiente permanente de ligação cósmica. Em outras palavras, uma espécie capaz de exercer sua autonomia de aprendizagem (autoconsciência), como cidadão (habitat) e como trabalhador culturalmente identificado em sociedade, como constituinte do equilíbrio harmônico da natureza.

Nesta compreensão, entendo como implicado o conceito de autonomia do sujeito aprendiz nos diferentes ciclos vitais, neste caso, jovem, adulto e idoso, considerando como complementares a educação libertadora/pedagogia da autonomia (Freire,1997), a auto-hetero-ecoformação (Pineau,1998) e o processo de individuação (Jung,1980).

Sabemos que o fenômeno do "analfabetismo" de PESSOAS jovens, adultas e idosas tem origem histórico-estrutural no desenvolvimento da sociedade brasileira e, como tal, é parte constituinte da síntese de dificuldades de sobrevivência, ou seja, a quase ausência de atendimento às necessidades básicas para o desenvolvimento da espécie humana como ser aprendiz orgânico cósmico - impulso criativo da VIDA por si mesma.

Vejamos a referida síntese, no dizer, aqui transcrito, da alfabetizanda Brasilina (1985), aos 50 anos, moradora de Ceilândia/Distrito Federal:

" A escola tá lá, acho bom demais! Meu filho também tá fazendo força pra aprendê; diz ele que vai pelejando este ano até o fim. Acho bom!

É triste, a gente não sabê nem conversá, a gente não tem saída com as pessoas que tem a leitura, a gente fica incuida, não tem aquela sensação, sei lá (riso), a gente fica com vergonha! A gente tendo uma explicação, tendo estudo, a gente já conversa sem medo, sem vergonha, é bom!

Ouvia falar nessa Brasília, pensava que era o fim do mundo. Aí, falava pra vim pra cá . Ai, Juraci (filho) ficou doido pra vim. Ai, Jeová (filho) falou: eu não vou tocá mais esta roça não, estou quase morrendo aqui, eu vou pra lá, vou pra Brasília, também. O pai dele foi desgostando: eu já tou véio, não vou tocá a roça, sua mãe tá cansada, então eu vou pra Brasília também, vou pô meus fio na escola pra vê se não fica burro igual eu. Aí, nóis vendeu fazenda, nóis vendeu tudo, a gente tinha um gadão, fazendona, de tudo, de tudo confortado, tinha uma farturona, mas cabou tudo. O restinho que tinha enterrou ai, no chão, que foi pedra, terra.

Agora, trabaiando pra vê se constrói ao meno a casa pra morá, porque o barraco tá prá cai."
(Coutinho,1986)

Diante da situação exposta por Brasilina e tantos outros assemelhados milhões de brasileiros e brasileiras, encontramos em Paulo Freire esta compreensão: "a alfabetização, numa área de miséria, só ganha sentido na dimensão humana se com ela, se realiza uma espécie de psicanálise histórico-político-social de que vá resultando a extrojeção da culpa indevida. A isto corresponde a "expulsão" do opressor de "dentro" do oprimido, enquanto sombra invasora. Sombra que expulsa pelo oprimido, precisa de ser substituída por sua autonomia e sua responsabilidade" e , mais adiante, "experimentando com intensidade a dialética entre a leitura do mundo e a leitura da palavra" (Freire,1997).

Inspirando-se no legado do educador Paulo Freire e alicerçada nos princípios da educação popular, a Rede Nacional de MOVAs (Movimento de Alfabetização de Pessoas Jovens e Adultas), denominada de MOVA-Brasil, criada inicialmente em 1989, em São Paulo, tem expandido e acolhido progressivamente as diferentes experiências marcadas pela diversidade da cultura brasileira, frutificando, desta práxis vivida, um conceito de alfabetização de jovens e adultos construído coletivamente:

"No MOVA-Brasil a alfabetização é concebida como apreensão de conhecimentos básicos de leitura e de escrita da palavra e do mundo, parte de um direito mais amplo que não se restringe à alfabetização, mas que deve atingir o ensino fundamental como requisito básico para a educação continuada durante a vida e para a formação de cidadãos leitores e escritores críticos e éticos, capazes de expressar suas culturas e experiências e de intervir na realidade social, conforme indica a Declaração de Hamburgo (V CONFITEA, Alemanha,1997)." E acrescenta: "É importante reafirmar a concepção consagrada na V CONFITEA, que fortalece as capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia, no trabalho, na cultura e nas relações sociais, considerando as diferenças geracionais, de gênero, etnia, entre campo e cidade, de portadores de necessidades especiais e de outros grupos".(MOVA-Brasil,2003)

Diante do exposto, aqui transcrevo a pergunta de Chico Cesar (1996) ao educador Paulo Freire com a devida resposta:

"Chico Cesar - Mestre, neste fim de século, o Brasil convive, ao mesmo tempo, com a pobreza, com a palafita e com os meios de comunicação e interação super elaborados, avançados: fax, internet, computadores e informática. Como é que o educador pode, deve conviver com estes novos meios e com esta diferença, com esta realidade tão complexa?

Paulo Freire – "Eu acho que a escola está longe de tudo isto, entende? E precisa estar perto e, veja bem, eu não tenho dúvida nenhuma de que é possível atualizar muito mais a escola, mesmo até antes de a gente poder usar instrumentos tão altamente tecnológicos como estes. Eu acho que uma das coisas que estão faltando à educação brasileira é também, de um lado aquele descaso pela curiosidade epistemológica, mas do outro é o descaso pela criatividade das pessoas. Quer dizer, esta mania muito autoritária de fundando-se, no despreparo do professor, preparar módulos, preparar pacotes de receitas para o educador seguir exatamente , o que uma equipe de inteligentes, de sábios, de iluminados faz do gabinete a milhares de quilometros distante do contexto do professor. Isso é um desrespeito ao professor. Veja bem, eu não estou condenando materiais que ajudem o professor a se tornar melhor professor. Não, a gente tem que ter, mas o que eu acho é que isto só funciona na medida em que exercita a curiosidade crítica do educador. No fundo, o de que a gente precisa é o que eu chamo de formação permanente do educador e a formação permanente passa pela reflexão crítica exercida sobre a sua prática. É discutindo a prática e não lendo bilhetes da equipe, que você forma o educador".

Refletindo todos estes entendimentos, considero que as tecnologias de informação e comunicação na alfabetização de jovens e adultos devem estar à serviço da CRIATIVIDADE das PESSOAS como linguagens, afirmando a identidade cultural brasileira na própria busca organizada coletivamente de solução dos problemas rumo a uma nova sociedade, exercitando princípios político-pedagógicos tão bem propostos pelo educador Paulo Freire (1987):

"Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão"

 "Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo".

Considero que o "círculo de cultura" como encontro presencial de sujeitos de saberes com suas histórias de vida e do lugar, tal como proposto pelo educador Paulo Freire, desde 1963, ainda é o espaço de aprendizagem mais apropriado para o exercício de iniciação da dialogicidade entre diferentes, politicamente comprometida com a mudança coletivamente construída pela sociedade organizada. A interatividade político-pedagógica do "círculo de cultura" de alfabetização de jovens e adultos resulta para além da aquisição da leitura , da escrita e do cálculo, na construção de sentido, de autonomia, de libertação, de "escuta sensível" (Barbier,1998), de convicção e prazer da construção coletiva. A interatividade ocorrente no "círculo de cultura" supõe a intervenção diretiva no processo de auto-organização do grupo, conforme demonstrado no estudo observacional de base etológica com uso de videoteipe de Angelim (1988) e Coutinho (1988).

As tecnologias de informação e comunicação deverão estar à serviço da produção de textos, falas, sons e imagens dos círculos de cultura, podendo constituir uma grande rede, intensamente interativa, de informação e comunicação em escolas públicas com programas de incentivo às artes literárias, plásticas, música, dança, cênicas e educação física como consciência corporal/toque sutil (Farah,1995), tendo como apoio bibliotecas públicas, cooperativas de produção gráfica, jornais comunitários, correio postal escolar (tarifa reduzida), postos públicos de consulta à internet, rádio-escolas públicas, rádios comunitárias, cooperativa de produção de vídeo, rede pública de TV-programas regionais interativos, oficinas de produção de software livre, centros públicos e outras possibilidades.

No Brasil, estamos vivendo um momento político bastante significativo e promissor, no qual o governo federal, assume sua vontade política expressa no Programa Fome Zero, integrando as políticas públicas setoriais, dentre elas o Programa "Brasil Alfabetizado" do Ministério da Educação/Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo, cuja efetividade tem relativa dependência das políticas setoriais do Ministério da Cultura, das Comunicações, do Desenvolvimento Agrário, do Trabalho e Emprego, das Cidades, da Saúde, das políticas setoriais estaduais e municipais e da adesão da sociedade civil organizada.

Cabe o uso adequado das tecnologias de informação e comunicação com a participação criativa das PESSOAS jovens, adultas e idosas alfabetizandas na mobilização da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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 *Palestra feita no Seminário Internacional Ibero-americano de Alfabetização de Jovens e Adultos,em Brasília, de 10 a 12/dezembro/2003, promoção: Brasil/MEC,OEI,UNESCO