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Até teólogo e bibliotecário dão aula de física

Dos professores de quinta a oitava série do país, 26,6% não têm a habilitação legal exigida para dar aulas nesse nível, que é diploma de ensino superior com licenciatura. Do total de docentes desse nível, 21,3% não têm nenhuma graduação e 5,3% têm diploma superior, mas sem a licenciatura.

O retrato é do censo da educação básica de 2007 feito pelo Inep, o instituto de pesquisas ligado ao MEC. Pela primeira vez, foram identificados dados individuais do universo de 1,8 milhão de docentes de escolas públicas e particulares do país.

Para quem trabalha até a quarta série, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, determina como formação mínima o curso normal (de formação de professores) de nível médio ou um curso superior com licenciatura. Da quinta série ao ensino médio, a exigência é ter nível superior com licenciatura. Entre os docentes, há até uma parcela que só estudou até a oitava série: 0,8% do total.

Sem a qualificação mínima exigida, esses profissionais dão aula para cerca de 600 mil alunos -ou 1% das matrículas-, segundo o levantamento. Roraima, Pará e Ceará têm a pior situação: 12% dos professores só têm nível fundamental ou médio, sem magistratura.

O ministro Fernando Haddad (Educação) diz acreditar que grande parte dos professores não enquadrados nas exigências tenha iniciado a carreira do magistério antes da Lei de Diretrizes e Bases, aprovada em 1996. Como a legislação não tem efeito retroativo, eles continuaram em atividade.

Para melhorar a qualificação, o MEC enviará ao Congresso um projeto que exigirá de todos os professores do ensino fundamental (1ª a 8ª série) a formação em algum curso superior com licenciatura.

O curso normal de nível médio continuaria valendo para quem atua em creche e pré-escola. Também serão criadas 310 mil vagas em universidades públicas de 21 Estados para professores sem a formação legal ou graduados em áreas diferentes daquelas em que atuam.

Cursos gratuitos de licenciatura em universidades privadas já são oferecidos no ProUni (programa de bolsas de estudo), mas têm baixa procura -1,2% do total de bolsistas.

O professor João Batista de Oliveira, que fez pesquisas na área de formação de professores, lembra que a exigência de nível superior já é o mínimo pedido nos países desenvolvidos.

Ressalta, por outro lado, que isso depende da qualidade da graduação. "Não temos muito forte no Brasil a evidência de que os atuais cursos de formação façam grande diferença."

Descompasso

Os dados mostram ainda que há, em todas as disciplinas, um descompasso entre a formação e o que ele tem a ensinar. Incluídas no ano passado, filosofia e sociologia/estudos sociais, por exemplo, têm apenas 25% e 13% de seus docentes graduados em filosofia e ciências sociais, respectivamente.

Física é o caso mais emblemático. Dos professores da disciplina no ensino médio, apenas 25% foram formados por algum curso universitário específico da área -contra 34% que estudaram matemática. A lista conta ainda com químicos, bibliotecários e teólogos.

Uma das causas dessa distorção pode ser o salário, segundo estudo de Fernando de Holanda Barbosa Filho e Samuel de Abreu Pessôa, da FGV. Eles compararam os vencimentos de professores da rede estadual em SP e no RS com os de profissionais de formação semelhante em outras áreas -o censo não inclui salários.

A conclusão é que, no mercado gaúcho, o magistério é menos vantajoso financeiramente para formados em física. Em São Paulo, há quase empate.

Para Barbosa Filho, o fato de os salários pagos a docentes de física e química da rede pública serem equivalentes aos de professores de outras disciplinas afasta do magistério os profissionais dessas áreas. Eles acabam indo para profissões com mais retorno financeiro.

Na avaliação do presidente da Sociedade Brasileira de Física, Alaor Chaves, é melhor um professor de física formado em engenharia ou matemática do que outro oriundo de um curso genérico de ciências. Mas, ressalva, um formado em matemática tende muitas vezes a abordar mais as equações envolvidas na matéria do que a explicação dos fenômenos, por exemplo.

MEC quer tornar mais rigorosa seleção de futuros professores

Diante das deficiências na formação de parcela expressiva dos professores, o Ministério da Educação lança hoje um conjunto de medidas para, de um lado, qualificar os que já estão em exercício e, de outro, tornar mais rigorosa a seleção dos futuros docentes.

Uma das propostas é filtrar futuros professores já na entrada para a universidade. O projeto, que depende da aprovação do Congresso, fixa uma nota mínima no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) para quem quiser ingressar em um curso superior de formação de professores.

A ideia de uma nota de corte nacional, segundo o ministro Fernando Haddad, parte da premissa de que dificilmente uma instituição de ensino consegue elevar a formação de um aluno que tem base precária.

Uma pesquisa com dados do Enem de 2005 de Paula Louzano, doutora em educação pela Universidade Harvard (EUA), mostrou que só 5% dos melhores alunos do ensino médio queriam seguir o magistério, o que ela credita à falta de atratividade da carreira. Entre os piores, o índice sobe para 16%.

Segundo o ministro, a nota de corte pode mudar de ano para ano. Nesse cálculo, teriam de ser equacionados o aspecto quantitativo, ou seja, a demanda da rede pública por professores, e o qualitativo.

Para depois da universidade, o MEC fará um concurso nacional para seleção de professores da rede pública. A prova será feita pelo Inep, e os Estados e municípios interessados poderão usar o banco de dados com as notas dos aprovados.

Serão anunciadas novas regras para a graduação em pedagogia em instituições privadas e federais - as estaduais e municipais não estão sob jurisdição do MEC. Os cursos terão de usar 70% da carga horária para formação de professores.

A medida vem após conclusão de que cursos ensinam pouco sobre o que e como ensinar. Para incentivar o ingresso nos cursos de formação de professores, será enviado ao Congresso um projeto de lei que modifica o Fies, que financia estudantes do ensino superior.

O aluno de um curso privado de formação de professores que aderir ao financiamento poderá, depois de formado, abater 1% de sua dívida a cada mês trabalhado na rede pública. Ao final de oito anos e quatro meses, ele terá quitado seu débito. A medida valerá também para médicos do Programa Saúde da Família em municípios definidos pelo Ministério da Saúde.

Docente do ensino médio é o mais sacrificado

O censo da educação básica do Inep mostra que o professor do ensino médio é o mais sobrecarregado do país. De acordo com o levantamento, 50% dos docentes dessa etapa são responsáveis por cinco ou mais turmas, incluindo os 14% que respondem por dez ou mais classes. Isso acontece porque eles, em geral, lecionam apenas uma disciplina, diferentemente do que ocorre no início da vida escolar das crianças.

É o caso do professor Luciano Pereira da Costa, que deixa sua casa em Diadema (Grande SP) por volta das 6h, todos os dias da semana. Às 7h, ele inicia a primeira aula do dia, num colégio particular. A maratona vai até as 23h, quando termina sua última aula, numa escola estadual ao lado de casa.

Juntando as duas escolas, ele tem cerca de 700 alunos, divididos em 19 turmas. Para uma delas, não dá aulas de física, sua licenciatura, mas de matemática. São cerca de 55 aulas por semana. Esse esquema rende a ele R$ 2.800 por mês, verba complementada com aulas particulares, que elevam a renda mensal para cerca de R$ 4.000.

A rotina corrida não permite que Luciano prepare aulas ou atividades diferentes, lamenta o professor. "Sinto falta disso. Acabo trabalhando sempre com o mesmo material. Se trabalhasse apenas em uma escola, poderia me dedicar mais."

O censo do Inep revela que 64% dos professores dão aula em só um período do dia (manhã, tarde ou noite), e 6%, nos três. A possibilidade de um período do dia fora da sala de aula é uma reivindicação de professores, com o argumento de que isso lhes dá tempo para corrigir provas e se preparar melhor.

A permanência do profissional em uma única escola acontece com 81% dos professores do Brasil, segundo o censo. Em São Paulo, Estado com o terceiro pior percentual, são 75%.

A professora de inglês Mônica Hermini dedica seu tempo a 180 alunos do colégio Santo Américo, no Morumbi (zona oeste de SP). Ela dá aulas das 8h às 16h20 e tem tempo livre para elaborar material didático próprio. As horas vagas ajudaram a concluir tese de doutorado em literatura inglesa na USP. Mônica recebe mais que o triplo dos salários de Luciano juntos.

Em média, segundo o censo, o professor brasileiro típico é mulher, tem 30 anos e dá aula a apenas uma turma de 35 alunos em uma escola. Mas o retrato varia com a região e a série.
(Folha de SP, 28/5)