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Um continente sem teoria, artigo de José Luís Fiori

No século XIX, o pensamento social europeu dedicou pouquíssima atenção ao continente americano. Mesmo os socialistas e marxistas que discutiram a "questão colonial", no final do século, só estavam preocupados com a Ásia e a África. Nunca tiveram interesse teórico e político nos novos Estados americanos, que alcançaram sua independência, mas se mantiveram sob a tutela diplomática e financeira da Grã Bretanha.

Foi só no início do Século XX que a teoria marxista do imperialismo se dedicou ao estudo específico da internacionalização do capital e seu papel no desenvolvimento capitalista a escala global.

Assim mesmo, seu objeto seguiu sendo a competição e a guerra entre os europeus. A maior parte dos autores marxistas ainda compartilhava a visão evolucionista de Marx, com relação ao futuro econômico dos países atrasados, seguros de que "os países mais desenvolvidos industrialmente mostram aos menos desenvolvidos, a imagem do que será o seu próprio futuro".

Foi só depois da década de 20, que a III Internacional Comunista transformou o imperialismo num adversário estratégico e num obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas nos países "coloniais e semi-coloniais".

De qualquer forma, o objeto central de todas as análises e propostas revolucionárias foi sempre a Índia, a China, o Egito e Indonésia, muito mais do que a América Latina.

Na primeira metade do Século XX, os Estados Unidos já haviam se transformado numa grande potência imperialista, e o resto da América Latina foi incluída pela III Internacional, depois de 1940, na mesma estratégia geral das "revoluções nacionais", ou das "revoluções democrático-burguesas", contra a aliança das forças imperialistas com as oligarquias agrárias feudais, e a favor da industrialização nacional dos países periféricos.

Um pouco mais à frente, na década de 1950, a tese da "revolução democrático-burguesa", e sua defesa do desenvolvimento industrial, foi reforçada pela "economia política da Cepal" (Comissão Econômica para a América Latina) que analisava a economia latino-americana no contexto de uma divisão internacional do trabalho entre países "centrais" e países "periféricos".

A Cepal criticava a tese das "vantagens comparativas" da teoria do comércio internacional de David Ricardo, e considerava que as relações comerciais entre as duas "fatias" do sistema econômico mundial prejudicavam o desenvolvimento industrial dos países periféricos.

Tratava-se de uma crítica econômica heterodoxa, de filiação keynesiana, mas do ponto de vista prático acabou convergindo com as propostas "nacional-desenvolvimentista", que foram hegemônicas no continente depois da II Guerra Mundial.

Na década da de 60, entretanto, a Revolução Cubana, a crise econômica e a multiplicação dos golpes militares em toda a América Latina provocaram um desencanto generalizado com a estratégia "democrático-burguesa", e com a proposta "cepalina" da industrialização por "substituição de importações".

Sua crítica intelectual deu origem às três grandes vertentes da "teoria da dependência", que talvez tenha sido a última tentativa de teorização latino-americana do Século XX.

A primeira vertente - de filiação marxista - considerava o desenvolvimento dos países centrais e o imperialismo um obstáculo intransponível para o desenvolvimento capitalista periférico. Por isto, falavam do "desenvolvimento do subdesenvolvimento" e defendiam a necessidade de uma revolução socialista imediata, inclusive como estratégia de desenvolvimento econômico.

A segunda vertente - de filiação "cepalina" - também identificava obstáculos à industrialização do continente, mas considerava possível superá-los através de uma série de "reformas estruturais" que se transformaram em tema central da agenda política latino-americana durante toda a década de 60.

Na verdade, a própria teoria da Cepal, sobre a relação "centro-periferia", já não dava conta da relação dos EUA com o seu "território econômico supranacional", que era diferente do que havia acontecido com a Grã Bretanha.

Por fim, a terceira vertente da teoria de dependência - de filiação a um só tempo marxista e cepalina - foi a que teve vida mais longa e efeitos mais surpreendentes, por três razões fundamentais: primeiro, porque defendia a viabilidade do capitalismo latino-americano; segundo, porque defendia uma estratégia de desenvolvimento "dependente e associado" com os países centrais; e terceiro, porque saíram desta corrente alguns dos principais líderes políticos e intelectuais da "restauração neoliberal" dos anos 90.

Como se tivesse ocorrido um apagão mental, velhos marxistas, nacionalistas e desenvolvimentistas abandonaram suas teorias latino-americanistas e aderiram à visão do sistema mundial e do capitalismo, própria do liberalismo europeu do século XVIII.

Nesta linha de pensamento, ainda em 2009, um importante intelectual desta corrente de ideias defendia - por cima de tudo o que passou no mundo, desde o início do Século XXI - que "não existe mais geopolítica nem imperialismo no novo mundo pós-colonial, da globalização, do sistema político e da democracia global... [e que] a estratégia clássica da geopolítica de garantir acesso exclusivo a recursos naturais na periferia do capitalismo já não faz sentido não só por seus custos, mas também porque, com a globalização, todos os mercados estão abertos, e é inimaginável que um país recuse vender a outro, por exemplo, petróleo a preço de mercado... [donde], as guerras entre as grandes potências já não fazem sentido porque todas as fronteiras já estão definidas..." (Bresser Pereira, L. C. "O mundo menos sombrio. Política e economia nas relações internacionais entre os grandes países", in Jornal de Resenhas. Março de 2009, Nº 1. Discurso Editorial, São Paulo, pp: 6 e 7).

Ingenuidade à parte, os liberais nunca tiveram uma teoria original a respeito da América Latina, nem precisam dela. A repetição recorrente de algumas platitudes cosmopolitas foi mais do que suficiente para sustentar sua visão da economia mundial e legitimar sua ação política e econômica idêntica em todos os países.

Mas no caso dos intelectuais progressistas do continente é uma má notícia saber que não existe mais uma teoria capaz de ler e interpretar a história do continente, e fundamentar uma estratégia coerente de construção do futuro, respeitada a imensa heterogeneidade latino-americana.
(Valor Econômico, 22/4)
 

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. Artigo publicado no “Valor Econômico”